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Vento Frio - Ficção científica e tecnologia avançada nos anos 20!

Como falei anteriormente, no conto , uma coisa que se esquece sobre H.P. Lovecraft, é o fato de que o mesmo não apresenta as coisas exatamente de uma natureza mágica, mas sim algo com um toque científico sobre a grandiosidade do universo. E da mesma forma que o cara escreve coisas que aparentemente são puramente de natureza mágica, algo que nem todos sabem é que ele também era apaixonado por cientistas loucos, e por isso fazia também contos que tinham muito os "pés no chão" e apresentavam detalhes sobre algo envolvendo ciência e sem nenhum toque "sobrenatural" como acontece por exemplo no conto "Do além". E hoje vou postar aqui exatamente um desses contos, e sei que muitos vão gostar, pois tem uma narrativa um tanto mais suave do que ele costuma por, já que não há citações sobre entidades poderosas, e ao mesmo tempo não chega a ter o clima de contos de fada como Os gatos de Ulthar, sendo bem sério, sombrio e direto ao ponto.

Essa história foi escrita em 1926, porém publicada apenas em 1928 e até em tempos atuais chama atenção o fato da mesma ter sido rejeitada pela revista Weird Tales, isso foi uma decisão do editor Farnsworth Wright, que rejeitou várias outras histórias de Lovecraft, incluindo Call of Cthulhu, ahhh se ele soubesse o que isso se tornaria, ein? Hehehehe, mas o destaque nessa história em especial foi o fato da mesma ser exatamente o gênero de conto que o editor gostava e mesmo assim foi pro saco, sendo publicada então na Tales of Magic and Mystery. Uma das suposições que se tem sobre a decisão de Wright era o medo da censura, e levando em consideração o final macabro pra cacete que esse conto tem, o editor pode ter tremido na base.

A inspiração desse conto veio de um tempo que Lovecraft passou em Nova Iorque e que aparentemente foi bastante estressante a ponto do mesmo "se vingar" daquela bagaça criando uma história onde demonstrava a pressão que o lugar era capaz de causar. A trama apresenta um homem que explica o motivo de ter pavor de vento frio e como algo terrível aconteceu em sua vida enquanto morava em um novo lugar. A narrativa é bastante incrível e de certa forma me lembrou um pouco de romances policiais.

De certa forma esse conto me lembrou um bocado o mangá Gyo, com um enorme clima de podridão e agonia, e acho até mesmo que Junji Ito pode ter se inspirado de verdade no conto, já que o mesmo se declarou como um fã de Lovecraft. Se você gosta de histórias de ficção científica, ou simplesmente gostaria de ver Lovecraft escrevendo com um estilo diferente e sem "magia" vale muito a pena dar uma conferida:


Vento Frio

Você me pede para lhe explicar por que temo uma corrente de ar frio; Pergunta por que tenho mais calafrios que os outros ao entrar numa sala fria, e pareço nauseado e repelido quando a frieza do anoitecer rasteja através do calor de um dia ameno de outono. Há quem diga que eu reajo ao frio como outros reagem a um mau cheiro, e eu sou o último a negar essa impressão. O que eu farei será um relato da mais horrível circunstância em que jamais me encontrei, e deixarei ao seu julgamento decidir se isso forma ou não uma explicação razoável para a minha peculiaridade.

É um erro imaginar que o horror está inextricavelmente associado com a escuridão, o silêncio, e a solidão. Eu o encontrei no brilho de um meio de tarde, no clangor de uma metrópole, e no meio de uma comum e maltrapilha pensão com uma prosaica senhoria e dois homens robustos ao meu lado. Na primavera de 1923 eu havia garantido um triste e inútil emprego na redação de uma revista na cidade de Nova Iorque; e sendo incapaz de pagar qualquer aluguel substancial, comecei a me arrastar de um estabelecimento habitacional para o outro numa busca por um quarto que pudesse combinar as qualidades de limpeza decente, mobília suportável, e preços muito razoáveis. Isso logo me mostrou que eu só tinha uma escolha entre maus diferentes, mas depois de um tempo eu acabei com uma casa na West Fourteenth Street que me enojou bem menos do que as outras que experimentei.

    O lugar era um casarão com quatro andares de arenito marrom, aparentemente datando do final dos anos quarenta, e equipado com madeira e mármore cujo manchado e maculado explendor exibia uma queda dos altos níveis do bom gosto. Nos quartos, grandes e espaçosos, e decorados com papel de parede impossível e ridículamente ornamentadas cornijas de gesso, habitava uma deprimente mofidão e pitadas de culinária obscura; mas os pisos eram limpos, os lençóis toleravelmente normais, e a água quente infrequentemente estava fria ou desligada, então eu cheguei a considerar que aquele era um lugar ao menos suportável para se hibernar até ser possível realmente viver de novo. A senhoria, uma desleixada, quase barbada mulher espanhola chamada Herrero, não me incomodava com fofocas ou com críticas sobre a luz queimada no corredor da frente do terceiro andar; e meus coabitantes tão quietos e taciturnos quanto possível, sendo em sua maioria espanhóis um pouco acima da mais grosseira e bruta categoria. Apenas o ruído dos carros na via pública lá embaixo chegava a ser um incômodo considerável.

    Eu já estava lá a cerca de três semanas quando o primeiro incidente aconteceu. Num começo de noite por volta das oito horas eu ouvi um salpicar no chão e me tornei subitamente consciente de que estava sentindo o pungente odor de amônia por algum tempo. Olhando ao meu redor, eu vi que o teto estava molhando e pingando; o ensopamento aparentemente procedendo de um canto do lado vindo da rua. Ansioso para cortar o problema pela raiz, apressei-me ao porão para informar a senhoria; e fui assegurado por ela de que o problema seria rapidamente resolvido.

“Doctor Muñoz,” ela exclamou enquanto me ultrapassava às pressas para o andar de cima, “ele derramó sus químicas. Ele esta muy doente para medicar a si miesmo—mas y mas doente todo tiempo—pero ele no tem ninguém mais para arrudar. Ele es muy maricón con sua doenza—todo o dia ele toma banhos com odor estranho, e ele no puede ficar exaltado ou quente.

Todas las tarefas de cassa ele fass—lo quartito dele és lleno de garafas y máquinas, e ele no trabarra como doctor. Pero ele rá foi muy gran—mi padre en Barcelona tinha ovido dele—y logo ahora ele arrumó o braço do encanador que se machucó de repiente. Ele nunca vai a fora, só en lo tieto, e mi irro Esteban lo traz su comida e ropa lavada y medicamientos e químicas. Dios mio, o sal amoníaco qui este hombre usa para se mantier fresco!”

    A Sra. Herrero desapareceu na escadaria para o quarto andar, e eu retornei ao meu quarto. A amônia havia parado de pingar, e enquanto eu limpava o que havia sido respingado e abria a janela para refrescar o ar, eu ouvia o pesado andar da senhoria sobre mim. O Dr. Muñoz eu nunca havia escutado, salvo certos sons como os de algum mecanismo movido a gasolina; já que seus passos eram suaves e gentis. Eu me perguntei por um momento qual poderia ser a estranha doença daquele homem, e se sua obstinada rejeição de ajuda exterior poderia ser o resultado de uma excêntricidade sem sentido. Existe, eu refleti banalmente, uma infinidade de patologias que poderiam afetar uma pessoa que desistiu do mundo.

Eu poderia nunca ter conhecido o Dr. Muñoz se não fosse pelo ataque cardíaco que súbitamente tomou conta de mim numa manhã enquanto eu escrevia sentado em meu quarto. Os médicos me disseram sobre os perigos dessas coisas, e eu sabia que não havia tempo a ser perdido; então lembrando-me do que a senhoria havia me dito sobre a ajuda do enfermo dada ao trabalhador ferido, eu me arrastei ao andar de cima e bati debilmente na porta acima da minha. Meu bater foi respondido com um bom inglês por uma voz curiosa um pouco além para a direita, perguntando meu nome e objetivo; e seguindo a resposta dessas perguntas, veio a abertura da porta ao lado da que eu esperava ver abrindo.

Uma corrente de ar frio me recebeu; e apesar daquele ter sido um dos mais quentes dias de Junho, tremi enquanto atravessei o limiar para dentro do grande apartamento cuja rica e fina decoração me surpreendia dentre aquele ninho de miséria e decadência. Um sofá-cama agora servia seu papel diurno de sofá, e a mobília de mogno, cortinas suntuosas, pinturas antigas, e estantes delicadas todas contavam a história do escritório de um cavalheiro, não de um quarto de pensão. Só então entendi que o pequeno quarto acima do meu—o “quartito” de garrafas e máquinas mencionado pela Sra. Herrero—era meramente o laboratório do doutor; e que os aposentos principais dele ficavam no espaçoso quarto adjacente cujas convenientes alcovas e cujo grande banheiro interligado permitiam-lhe esconder todas as suas cômodas e outros utensílios domésticos obstrusivos. Dr. Muñoz, certamente, era um homem de classe, cultivo, e discrição.

A figura diante de mim era curta mas unicamente proporcional, e estava vestida com roupas formais de perfeito tamanho e corte. Um bem formado rosto com uma expressão superior porém nada arrogante era adornado por uma curta barba cinzenta, e um pincenê antiquado cobria cheios e escuros olhos e sobrepunha um nariz anquilino que dava um toque mouro a uma fisiologia quase toda celtibérica. O cabelo grosso, bem cortado que sugeria visitas pontuais de um barbeiro estava partido com graça no topo de uma testa alta; o conjunto completo era um de inteligência atordoante e sangue superior.

Não obstante, enquanto eu via Dr. Muñoz em uma rajada de ar frio, eu sentia uma repugnância que nada em sua aparência poderia justificar. Apenas sua complexão vividamente inclinada e a frieza do seu toque poderia fornecer um embasamento físico para aquele sentimento, e mesmo essas coisas poderiam ser perdoadas considerando a conhecida invalidez do homem. Pode, também, ter sido o frio singular que me alienara; pois tal gelidez era anormal num dia tão quente, e o anormal sempre causa aversão, desconfiança, e medo.

    Mas minha repugnância foi logo esquecida para dar lugar a admiração, pois a habilidade extrema do estranho médico finalmente se manifestou apesar de sua frieza congelante e da tremedeira de suas mãos que pareciam não ter sangue. Ele claramente entendeu minha necessidade com um só vislumbre, e tratou delas com a destreza de um mestre; enquanto me assegurava com uma finamente modulada porém estranhamente vazia e destimbrada voz de que ele era o mais amargo dos jurados inimigos da morte, e de que havia afundado toda a sua fortuna e perdido todos os seus amigos em uma vida de experimentos bizarros devotados a sua complexidade e extirpação. Algo de fanaticamente benevolente parecia residir nele, e ele divagava quase tagarelando enquanto auscultava meu peito e misturava uma adequada confecção de remédios buscados do pequeno quarto-laboratório. Evidentemente a companhia de um homem de boa família era rara novidade para ele naquele sujo ambiente, e isso o moveu a uma linguagem mais descontraída enquanto memórias de dias melhores emergiam em sua mente.

    A voz dele, um tanto fresca, era ao menos tranquilizante; e eu mal podia perceber que ele respirava enquanto as fluentes frases rolavam por sua língua. Ele buscava distrair minha mente de minha própria apreensão contando-me de suas teorias e seus experimentos; e eu me lembro de sua consolação delicada quanto ao meu coração fraco em que insistia sobre a vantagem da força de vontade e da consciência contra a própria vida orgânica, e que um corpo humano sendo apenas originalmente saudável e cuidadosamente preservado pode através de melhoramentos científicos reter uma forma de animação nervosa a despeito dos mais sérios danos, defeitos, ou até mesmo a ausência de uma série de orgãos específicos. Ele poderia, ele disse em meio gracejo, algum dia ensinar-me a viver—ou ao menos a possuir algum tipo de existência consciente—sem nenhum coração sequer! Por sua parte, ele sofria de uma complicação de padecimentos que requeriam um regime muito restrito de frio constante. Qualquer aumento perceptível de temperatura poderia, se prolongado, afetá-lo fatalmente; e a frigidez de sua habitação—uns 55 ou 56 graus Fahrenheit—era mantida por um sistema de absorção de resfriamento por amônia, o motor a gasolina cujos bombeares eu frequentemente ouvia no meu próprio quarto abaixo.

    Aliviado de minha aflição em um tempo maravilhosamente curto, eu deixei o gélido lugar como um discípulo e devoto do dotado recluso. Depois disso eu o fiz frequentes e agasalhadas visitas; ouvindo enquanto ele me contava de pesquisas secretas e quase assombrantes resultados, e tremendo um pouco quando eu examinava os não convencionais e surpreendentemente antigos volumes em suas estantes. Eu estava eventualmente, eu devo adicionar, quase curado de vez da minha doença graças a suas habilidosas intervenções. Parecia que ele não desprezava os encantamentos dos medievalistas, já que ele acreditava que essas fórmulas crípticas contêm raros estímulos psicológicos que podem de maneira concebível apresentar efeitos únicos na substância de um sistema nervoso em que pulsações orgânicas já não fluem. Eu fui tocado por seus relatos do idoso Dr. Torres de Valencia, que havia dividido seus experimentos anteriores com ele durante a grande moléstia de dezoito anos atrás, de onde sua atual enfermidade derivava. Não antes do venerável profissional salvar seu colega foi que ele mesmo sucumbiu ao sinistro inimigo com quem ele lutava. Talvez a tensão tenha sido grande demais; pois Dr. Muñoz deixou claro—embora não em detalhes—que os métodos de cura haviam sido dos mais extraordinários, envolvendo cenas e processos nada bem vindos pelos idosos e pelos Galenos conservadores.

    Com o passar das semanas, eu observei com arrependimento que meu novo amigo estava de fato perdendo lenta mas inegavelmente perdendo suas faculdades físicas, como a Sra. Herrero havia insinuado. Os aspectos lívidos de sua feição estavam intensificados, sua voz se tornara mais vazia e indistinta, sua coordenação motora estava menos do que perfeitamente coordenada, e sua mente e força de vontade mostravam menos resiliência e iniciativa. Dessa triste mudança ele não parecia de forma alguma ignorante, e de pouco em pouco sua expressão e sua fala me levaram a macabra ironia de ter em mim restorada a sutil repulsa que senti originalmente.

    Ele desenvolveu estranhos caprichos, adquirindo um gosto por temperos exóticos e incenso egípcio até que seu quarto cheirasse como a abóbada de um faraó sepultado no Vale dos Reis. Ao mesmo tempo suas exigências por ar frio aumentaram, e com a minha ajuda ele amplificou o encanamento de amônia de seu quarto e modificou as bombas e alimentadores de sua máquina refrigeradora até que ele pudesse manter a temperatura tão baixa quanto 34º ou 40º e finalmente até 28º; o banheiro e o laboratório, é claro, sendo menos gelados, a fim de que a água não congelasse, e que os processos químicos não pudessem ser impedidos. O inquilino ao lado reclamou do ar congelante ao redor da porta, então eu o ajudei a instalar pesados isolamentos para prevenir o problema. Uma forma de horror crescente, do tipo mais mórbido e assustador, parecia ter o possuído. Ele falava de morte incessantemente, mas ria ocamente quando assuntos como enterros ou acertos funerários eram gentilmente sugeridos.

Em geral, ele se tornou uma desconsertante e até mesmo macabra companhia; ainda assim em minha gratidão por sua cura eu não pude abandoná-lo nas mãos dos estranhos ao seu redor, e tomava os cuidados de tirar o pó de seu quarto e atender às suas necessidades todos os dias, enterrado em um casaco comprido de inverno que eu comprara especialmente com esse propósito. Eu também fazia muitas de suas comprar, e engasgava de perplexidade com alguns dos compostos químicos que ele pedia de drogarias e casas de fornecimento de laboratório.   

    Uma crescente e inexplicada atmosfera de pânico parecia surgir ao redor de seu apartamento. Toda a casa, como eu havia dito, possuía um odor de mofo; mas o cheiro em seu quarto era pior—mesmo com os temperos e o incenso, e os pungentes compostos químicos dos agora incessantes banhos que ele insistia em tomar sem ajuda. Eu percebi que aquilo deveria estar ligado à sua doença, e tinha calafrios quando refletia comigo mesmo qual doença seria aquela. A Sra. Herrero benzia-se quando olhava para ele, e deixou todos os cuidados do homem incondicionalmente em minhas mãos; nem mesmo deixava seu filho Esteban continuar a fazer favores para ele. Quando eu sugeria outros médicos, o enfermo se enfurecia o tanto quanto ousava se permitir. Ele evidentemente temia o efeito físico de qualquer emoção forte, ainda assim a sua força motriz parecia mais afiada em vez de mais fraca, e ele se recusava e ficar confinado a sua cama. A estafa de seus antigos dias de doente dava lugar a um retorno de motivação ardente, tanto que ele parecia preste a atirar provocações contra o anjo da morte mesmo enquanto seu antigo inimigo o apreendia. A pretensão de comer, curiosamente sempre como uma formalidade para ele, ele virtualmente abandonara; e somente poder mental parecia protegê-lo de total colapso.

    Ele adquirira o habito de escrever longos documentos de algum tipo, os quais ele cuidadosamente selava e preenchia com instruções para que eu transmitisse-os após a sua morte para certas pessoas que ele nomeara—na sua maior parte estudiosos do Leste Indiano, mas incluíndo um já celebrado médico francês agora considerado morto, e sobre o qual as mais inacreditáveis coisas foram sussurradas. Após as ocorrências do que relato, eu queimei todos aqueles papéis sem entregá-los ou abri-los. O aspecto e a voz dele se tornaram completamente assustadores, e sua presença quase insuportável. Em um dia de Setembro um vislumbre inesperado dele induziu um ataque epilético em um homem que havia vindo para arrumar sua lampada elétrica de mesa; um ataque que ele tratou efetivamente enquanto mantia-se bem fora de vista. Aquele homem, curiosamente, havia passado pelos terrores da Grande Guerra sem ter sentido medo algum.

    Então, no meio de Outubro, o horror dos horrores veio com estupefaciente supresa. Em uma noite por volta das onze a bomba da máquina de refrigeração quebrou, sendo que dentro de três horas o processo de resfriamento por amônia se tornaria impossível. Dr. Muñoz me convocou com pesadas batidas no chão, e eu trabalhei desesperadamente tentando reparar o dano enquanto meu anfitrião xingava em um tom cuja falta de vida e vaziez ultrapassavam qualquer descrição. Meus esforços amadores, no entanto, provaram-se inúteis; e quando eu trouxe o mecânico da garagem 24 horas no fim da rua nós descobrimos que nada poderia ser feito até o amanhecer, quando um novo pistão poderia ser obtido. A fúria e o medo do hermitão moribundo, dilatando-se a grotescas proporções, parecia suscetível a estraçalhar o que sobrada de seu físico decadente; e uma vez um espasmo fez com que ele colocasse as mãos sobre os olhos e corresse para o banheiro. Ele tateou seu caminho para fora com o rosto coberto de apertados esparadrapos, e eu nunca vi seus olhos novamente.

    A frigidez do apartamento estava agora sensivelmente diminuindo, e por volta das 5 da manhã o doutor se retirou para o banheiro, me dando a ordem de mantê-lo abastecido com todo o gelo que eu pudesse obter em drogaria e cafeterias 24 horas. Enquanto eu retornava de minhas por vezes desencorajadoras jornadas e depositava meus espólios diante da porta fechada do banheiro, eu podia ouvir um incessante mover de água vindo de dentro, e uma voz áspera coaxando ordens para que eu buscasse “Mais—mais!” Lentamente nasceu um dia quente, e as lojas foram abrindo uma a uma. Eu pedi a Esteban que ou me ajudasse com a busca por gelo enquanto eu obtinha o pistão da bomba, ou que pedisse o pisão enquanto eu continuava com o gelo; mas como foi instruído por sua mãe, ele negou com firmeza.

    Por fim acabei por contratar um vadio de aparência decadente que encontrei numa esquina da Oitava Avenida para que mantesse o paciente suprido com gelo de uma pequena loja que o apresentei, e me dediquei diligentemente à tarefa de encontrar um pistão de bomba e contratar trabalhadores competentes para intalá-lo. A tarefa parecia interminável, e eu me enfureci quase tão violentamente quando o hermitão quando eu vi as horas se esvaindo em círculo sem ar e sem refeições de telefonemas em vão, e uma busca febril de lugar em lugar, de ponto em ponto usando metrôs ou bondes. Por volta do meio dia eu encontrei uma casa de fornecimento adequada no centro da cidade, e foi aproximadamente as 1:30 da tarde que cheguei na pensão com a parafernália necessária e dois robustos e inteligentes mecânicos. Eu havia feito tudo que podia, e esperava ter chegado a tempo.

    O mais obscuro dos terrores, no entanto, era o que me esperava. A casa estava um completo tumulto, e por cima da tagarelice das vozes aterrorizadas eu ouvi um homem rezar em basso profundo. Coisas demoníacas estavam no ar, diziam os pensionistas por sobre as contas de seus rosários enquanto sentiam o odor vindo debaixo da porta fechada do doutor. O vagabundo que eu contratara, aparentemente, fugiu gritanto e com a expressão enlouquecida não muito depois de sua segunda entrega de gelo; talvez como resultado de curiosidade excessiva. Ele não podia, é claro, ter trancado a porta atrás de si; ainda assim ela estava agora intrespassável, presumidamente trancada por dentro. Não havia som vindo de dentro salvo um certo tipo de gotejar grosso e lento.

    Brevemente consultado a Sra. Herrero e os trabalhadores apesar de um medo que roía o fundo da minha alma, eu sugeri que a porta fosse derrubada; mas a senhoria encontrou uma maneira de virar a chave pelo lado de fora com o uso de uma bugiganga de arame. Antecipadamente abrimos as portas de todos os outros quartos daquele corredor, e escancaramos todas as janelas por completo. Agora, com narizes cobertos de lenços, nós trêmulamente invadimos o maldito quarto sul que reluziu com o sol quente do começo da tarde.

    Um tipo de rastro escuro e gosmento levava da porta aberta do banheiro até a porta do corredor, e então até a mesa, onde uma terrível poça se acumulara. Algo estava lá rabiscado de lápis em uma quase incompreensível escrita cega num pedaço de papel horrívelmente manchado como se garras tivessem arranhado as ultimas palavras. O rastro então levava até o sofá e terminava indizivelmente.

    O que estava, ou havia estado, no sofá eu não ouso descrever aqui. Mas era a mesma coisa que cobria o grudendo pedaço de papel antes de eu acender um fósforo e queimá-lo; e fiquei paralizado de terror no quarto enquanto a senhoria e os dois mecânicos corriam frenéticamente para fora daquele lugar infernal para tagarelar suas histórias incoerentes na delegacia mais próxima. As nauseantes palavras pareciam quase incríveis na luz amarelada do sol, com o clangor dos carros e dos caminhões ascendendo com clamor a populada Fourteenth Street, ainda assim eu confesso que então acreditei nelas. Se eu acredito nelas agora eu honestamente não sei. Existem coisas sobre as quais é melhor não especular, e tudo que eu posso dizer é que eu odeio o cheiro de amônia, e enfraqueço ao sentir o mais suave vento frio.

    “O fim,” dizia o fétido garrancho, “está aqui. Sem mais gelo—o homem me viu e saiu correndo. Mais quente a cada minuto, e os lenços não vão durar. Eu imagino se você sabe—o que eu disse sobre a força de vontade e os nervos e o corpo sendo preservado após os orgãos pararem de funcionar. Era tudo ótimo na teoria, mas não podia ser mantido indefinidamente. Havia uma deteriorização que eu não havia previsto. Dr. Torres sabia, mas o choque o matou. Ele não pode aguentar o que ele devia fazer—ele tinha que me por em um estranho e escuro lugar onde ele lia minha carta e me trazia de volta. E os orgão nunca funcionariam novamente. Aquilo tinha de ser feito da minha maneira—preservação artificial—pois veja bem, eu morri daquela vez a dezoito anos atrás.”

H.P. Lovecraft
(Tradução: O meu belíssimo amigo Virgula que teve a bondade de traduzir essa maravilha pra mim! Então agradeçam a ele porque se não vocês não iam ler essa maravilha não ein! *-*)

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