Esse é um filme que eu sempre quis assistir e esperava o momento certo, que finalmente chegou! Não é que eu seja fã do Zé do Caixão, mas sempre achei um personagem extremamente ousado, afinal de contas hoje em dia mal temos filmes de terror nacional, sendo a maioria super desconhecido como O Diabo Mora Aqui e a trilogia Mar Negro, então imagina em 1964, início da ditadura militar no Brasil? E ao ver, me impressionei, muito mais robusto do que imaginei que fosse.
A história é sobre um coveiro chamado Zé, muito temido em uma cidade do interior por ser capaz de fazer qualquer coisa, seja na brutalidade, seja na pressão psicológica. Também não dando satisfações a nada e nem ninguém, inclusive forças sobrenaturais. Um ateu completo, desafiando frequentemente Deus e o Diabo.
Eu não sabia nada sobre a história do Zé do Caixão, sempre pensei nele como um personagem de filme trash, muito provavelmente porque nos anos 90, ele apresentava um programa chamado Cine Band Trash, que só aparecia as mais variadas tosqueiras e tinha um jeito bem peculiar de falar que era muito ridículo para ser levado a sério.
Então me surpreendi ao ver não apenas um personagem sério, mas também muito robusto, daquele tipo que não é uma mera casca como boa parte dos personagens de diversos filmes antigos. Esperava algo mais bobo, envolvendo um ser sobrenatural que aparecia do inferno pra dar aquela sacaneada na galera e depois se mandar.
Mas o que temos aqui é algo que tem uma elegância semelhante ao que senti quando vi o primeiro Sexta-Feira 13, que me surpreendeu ao mostrar uma história muito bem apresentada e não a tosqueira que já tava acostumado em relação a filmes do Jason. No caso do Zé do Caixão é algo que ficou até melhor, pois tem um desenvolvimento no filme inteiro com um personagem super sólido.
Faz lembrar aquelas histórias de assombração que rolam pelo interior do Brasil "Tinha um cara que era muito ruim, fazia de tudo, até que uma coisa aconteceu...". E é bem o que temos aqui, só que o mais legal é que o personagem apresenta suas motivações e a sensação que passa é de alma livre, que vive intensamente e vê o mundo de um jeito diferente. Não que seja uma pessoa boa, mas não é apenas "o cara mal", é alguém que tem uma visão própria.
Zé do Caixão tem esse nome por ser um coveiro, e assim como vemos em cidades de interior, é muito fácil ter o "João Padeiro", a "Ana da Costura" e assim vai. Ele é um psicopata e pensa de forma bastante fria, portanto se alguém se mete em seu caminho, ele não liga de surrar a pessoa descontroladamente ou mesmo cometer assassinatos e então sumir com as evidências.
Algo muito bacana é um diálogo que ele tem com um personagem em que ele diz que a bebida afasta os maus espíritos e um amigo diz que ele fala como se acreditasse nessas coisas e que sua descrença parece uma revolta e a resposta é: "Se acredito ou não, o fato é que preciso estar de acordo com quem acredita. Eu não posso ter descrença quando nunca tive crença... Crer em que? Em um símbolo? Em uma força inexistente criada pela ignorância? Sim... Sou revoltado... Com os tolos como você, que temem o que não veem e tornam-se escravos daquilo que realmente existe, a vida! Veja esse povo seu... Qual a razão para me temerem? Porque eu uso roupa preta? Porque eu creio em mim? Porque eu rio das crenças deles? Não... Porque eu sou mais forte e tenho inteligência o suficiente para demorar quem quer que seja. Eles são fracos, porque são escravizados pelo o que desconhecem, eu sou livre, por isso tenho mais força.".
Outra coisa é que o que ele mais deseja na vida é ter um filho e que o seu maior medo é ver sua linhagem acabar ali. Ele acredita na vida e que o único dever de cada pessoa realmente é garantir que seu sangue continue na terra antes de partirem. Inclusive é notável um certo tormento em relação ao personagem. Dá pra sentir que ele vive em outra realidade, vaga pela madrugada, interage com outras pessoas de forma sarcástica e passa muito a essência de alguém entediado.
Tem uma cena que mostra muito bem esse tormento em que ele começa a gritar por Deus e o Diabo, a chamar a morte, a desafiá-los pedindo uma demonstração de que o sobrenatural existe. Mas não tem nenhuma resposta e você nota bem o quanto tudo parece incomodá-lo, o quanto ele corre contra o tempo para ter um herdeiro.
Outra coisa bacana é que o filme é bastante decente, tem uma ótima fotografia, e por essa eu não esperava. As cenas em que aparecem o Zé parado com aquela ventania em suas roupas em um cemitério dão um baita de um ar macabro. E o clima pesado de blasfêmia cometido pelo personagem com certeza incomodou as pessoas da época.
Acredito que deve ter dado muitos pesadelos no público daquele tempo, a começar pelo início em que uma bruxa aparece amaldiçoando quem assiste e falando sobre o conteúdo obscuro que tem no filme, e também dizendo que quando saírem do cinema, e passarem por locais escuros, é para lembrar dos espíritos que vagam pela noite.
Gostei muito de como usaram efeitos especiais. Embora a maioria do filme seja a história de um cara que vive uma vida de forma extremamente intensa e sombria, existem efeitos interessantes, que para um filme em preto e branco acho sempre lindo de se ver, afinal de contas não tinham computadores disponíveis na época, então normalmente essas coisas eram aplicadas com um trabalho direto na película.
Enfim, o protagonista, roteirista e diretor do filme José Mojica Marins, disse que o personagem surgiu de um pesadelo que ele teve sendo arrastado para o inferno e na época procurou um ator que quisesse fazer, mas ninguém aceitou e o ator Milton Ribeiro chegou a dizer "Eu não vou cair no ridículo de fazer um papel desses!" e no fim das contas o próprio diretor teve que interpretar o personagem e o eternizou. Ele faleceu em fevereiro de 2020, mas impregnou o Zé do Caixão na cultura brasileira, e inclusive chegou a ser conhecido lá fora pelo nome de Coffin Joe.
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