Uma coisa que sempre me inspira é ir a lugares que não costumo ir normalmente, sendo assim apesar de eu viajar muito pouco quando acontece eu sempre fico extremamente inspirado a escrever histórias que se passem em um ambiente semelhante a aquele. Pelo visto Lovecraft era do mesmo jeito, pois é impressionante a quantidade de vezes que vou pesquisar sobre um conto do cara e sua inspiração veio graças a um lugar que ele esteve.
Em "The Festival" a coisa não foi diferente e foi escrito baseado em sua estadia na cidade costeira de Marblehead em 1922, que fica no estado de Massachusetts que por sua vez faz parte do conjunto de seis estados americanos que compõem o lugar que é chamado de Nova Inglaterra, pois foi onde os peregrinos ingleses ficaram quando chegaram aos EUA e portanto o lugar tem uma aparência muito mais clássica.
E assim em 1923 ele terminou de escrever o conto, no entanto somente em janeiro de 1925 é que a coisa foi publicada na revista Weird Tales, em que constantemente o autor lançava suas obras como o tão falado "O chamado de Cthulhu" ou até mesmo obras em conjunto como foi o caso de "O executor elétrico". Então aquela revista pode realmente ser chamada de "A casa de Lovecraft".
Na história nós vemos algo muito comum nos contos lovecraftianos, um personagem sem nome, não sei se o autor fazia isso porque sempre escrevia sobre ele mesmo mas não queria deixar na cara ou se queria que o leitor se colocasse no lugar daquele personagem, mas levando em conta o quanto Lovecraft se baseava em experiências e desejos próprios acho que é a primeira opção.
Aqui o personagem é de uma família tradicional e um dia é enviado para uma cidadezinha para participar de um festival, no entanto ele não sabe de nada e nem o motivo, faz apenas para não criar confusão e seguir a estranha tradição de família, mas não demora muito para perceber que as coisas estão realmente muito estranhas. Confiram:
O Festival
Efficiut Daemones, ut quae non sunt, sic tamen quasi sint, conspicienda bominibus exhibeant.
-Lactantius-
-Lactantius-
EU ESTAVA LONGE de casa, e o feitiço do mar oriental havia caído
sobre mim. Ao crepúsculo, eu o ouvia batendo nas rochas e sabia que ele
ficava logo depois do monte onde os salgueiros se contorciam contra o
céu claro e as primeiras estrelas da noite. E como meus pais haviam me
chamado para a velha cidade mais adiante, atravessei a neve rasa e
necém-caída ao longo da estrada que subia até onde Aldebarã bailava por
entre as árvores; na direção da cidade muito antiga, que eu nunca tinha
visto, mas com a qual várias vezes sonhara.
Era o Yuletide, que os homens chamam de Natal, embora saibam em seus
corações que é mais antigo que Belém e a Babilônia, mais velho que
Mênfis e a Humanidade. Era o Yuletide, e eu havia vindo finalmente à
antiga cidade costeira onde minha gente havia habitado e mantido a
festividade mesmo nos velhos tempos, quando ela era proibida; onde eles
também haviam instruído seus filhos a manterem o festival uma vez a cada
século, para que a memória dos segredos primais não fosse esquecida.
Minha gente era antiga, e já eram antigos mesmo quando esta terra foi
colonizada, três séculos atrás. E eles eram estranhos, porque tinham
vindo como um povo furtivo e obscuro dos jardins de papoulas narcóticas
do sul, e falavam outra língua antes de aprenderem a língua dos
pescadores de olhos azuis. E eles estavam dispersos, e compartilhavam
apenas os rituais de mistérios que nenhum vivente poderia entender. Eu
era o único que tinha voltado aquela noite à velha cidade pesqueira,
como rezava a lenda que apenas os pobres e solitários lembravam.
Então, além do cume da colina, vi Kingsport com seus moinhos e
campanários, telhados e chaminés, cais e pequenas pontes, salgueiros e
cemitérios; intermináveis labirintos de ruas íngremes, estreitas e
tortas, vertiginosas torres de igrejas que o tempo não ousou tocar; uma
confusão incessante de casas coloniais amontoadas e espalhadas em todos
os ângulos e níveis como os blocos desordenados dos folguedos de ulna
criança; antigüidades pairando com asas cinzentas abertas em telhados
duplos embranquecidos pelo inverno; janelas cortinadas, uma a uma
piscando na escuridão fria para se juntar a Orion e as estrelas
arcaicas. E contra os cais apodrecidos o mar se chocava; o mar,
imemorial e cheio de segredos, do qual as pessoas tinham vindo nos
tempos antigos.
Ao lado do topo da rua, uma elevação ainda mais alta começava,
desolada e exposta ao vento, e vi que era um campo santo, onde lápides
negras fincavam-se fantasmagoricamente através da neve, como as unhas
apodrecidas do cadáver de um gigante. A rua era vazia e solitária, e às
vezes eu pensava ouvir, no vento, um horrível e distante gemido, como um
enforcamento. Eles haviam enforcado quatro parentes meus por bruxaria
em 1692, mas eu não sabia exatamente onde.
No cruzamento da rua com a ladeira voltada para o mar, fiquei atento
aos sons alegres de um entardecer de aldeia, mas não os escutei. Então
lembrei da época, e achei que esse velho povo puritano possivelmente
tinha costumes natalinos estranhos a mim, cheios de orações silenciosas.
Então, depois que eu não ouvi sons alegres nem vi peregrinos, fiquei
observando as casas silenciosamente iluminadas, e os muros sombrios de
pedras, onde as placas de velhas lojas e tavernas batiam à brisa
salgada, e as aidravas grotescas penduradas nas portas cintilavam ao
longo das ruas sem pavimento, à luz de pequenas janelas cortinadas.
Eu havia visto mapas da cidade, e sabia onde encontrar a casa da
minha gente. Foi dito que eu seria reconhecido e bem-vindo, pelas velhas
tradições da aldeia; então me apressei pela Back Street até a Cicle
Court, e atravessei a neve fresca sobre toda a laje que pavimentava a
cidade, até onde a Green Lane levava aos fundos da Market House. Os
velhos mapas ainda serviam bem, e eu não tive nenhum problema; embora em
Arkham, devem ter mentido quando disseram que passavam bondes por ali,
já que não vi um único fio no alto. A neve teria coberto os trilhos, de
qualquer modo. Estava satisfeito por ter preferido andar, pois a aldeia
branca tinha parecido muito bonita da colina; e agora eu estava ansioso
em bater à porta da minha gente, a sétima casa à esquerda na Green Lane,
com um antigo telhado pontudo e segundo andar ressaltado, tudo
construído antes del650.
Havia luzes dentro da casa quando me dirigi a ela, e vi pelas janelas
de grades cruzadas que deveria estar muito próxima de seu estado
antigo. A parte superior sobressaia à rua estreita e coberta de grama e
quase encontrava a parte que sobressaia da casa em frente, de forma que
me encontrava quase num túnel, com o degrau de pedra da porta totalmente
coberto de neve. Não havia calçada, mas muitas casas tinham portas
altas que eram alcançadas por degraus duplos com corrimãos de ferro. Era
uma cena estranha, e como eu era um estranho à Nova Inglaterra, nunca
havia visto algo assim antes. Embora isso tenha me agradado, eu teria
saboreado melhor se houvesse pegadas na neve, pessoas nas ruas e algumas
janelas fechadas sem cortinas.
Quando sondei a antiga aldrava de ferro, fiquei com um pouco de medo.
Algum temor havia se acumulado em mim, talvez por causa da estranheza
da minha herança, a falta de movimento e o silêncio estranho da manhã
naquela velha cidade de costumes bizarros. E quando minha batida foi
respondida, fiquei completamente amedrontado, porque não havia ouvido
nenhum passo antes da porta abrir com um rangido. Mas não fiquei com
medo por muito tempo, pois o homem idoso de pijama e chinelos na entrada
tinha um rosto brando que me tranqüilizou; e apesar de ter feito sinais
de que era surdo, escreveu uma curiosa e antiga saudação com o estilete
e a tabuleta de cera que carregava.
Acenou para que o seguisse até uma sala baixa, iluminada por velas,
com caibros expostos e móveis escuros, rijos e esparsos, do século XVII.
O passado estava vivo ali, nenhum atributo tinha sido perdido. Havia
uma lareira cavernosa e uma máquina de fiar próxima na qual uma mulher
idosa, usando um manto e uma touca comprida, sentava-se na minha
direção, fiando silenciosamente, apesar da época festiva. Um desalento
indefinido parecia pairar sobre o lugar, e eu estava bestificado pelo
fogo não estar aceso. O quarto em frente às janelas cortinadas parecia
estar ocupado, embora eu não tivesse certeza. Eu não gostei de tudo o
que vi, e senti o temor novamente. Este temor ficou mais forte do que
estava antes de ser abrandado. Quanto mais olhava para o rosto brando do
velho, mais a sua brandura excessiva me aterrorizava. Os olhos nunca se
moviam, e a pele assemelhava-se à cera. Finalmente fiquei convencido de
que não era realmente um rosto, mas uma habilidosa máscara demoníaca.
Suas mãos fantásticas, curiosamente enluvadas, escreveram na tabuleta
com impressionante habilidade e me disseram que eu deveria esperar um
pouco para ser levado ao local da festividade.
Apontando uma cadeira, uma mesa e uma pilha de livros, o velho agora
deixou a sala; e quando me sentei para ler, vi que os livros estavam
esbranquiçados e bolorentos, e que incluíam o velho Maravilhas da
Ciência, de Morryster, o terrível Saducismus Triumpharus, de Joseph
Glanvil, publicado em 1681, o chocante Daemonolarreia, de Remigius,
impresso em 1681 em Lyons, e o pior de todos, o impronunciável
Necronomicon, do árabe louco Abdul Al-hazred, na tradução latina
proibida de Olaus Wormius; um livro que eu nunca tinha visto, mas do
qual ouvira sussurrarem coisas monstruosas. Ninguém falou comigo, mas eu
podia ouvir o bater das placas ao vento no lado de fora, e o zumbido da
máquina de fiar enquanto a velha de touca continuava silenciosamente a
fiar e fiar. Achei a sala, os livros e as pessoas, muito mórbidas e
inquietantes, mas por causa de uma velha tradição de festividades estranhas que meus pais tinham me intimado a seguir, resolvi esperar
coisas esquisitas. Então tentei ler, e logo comecei a tremer, absorvido
por algo que descobri ser o malfadado Necronomicon, um pensamento e uma
lenda muito hedionda para sanidade ou consciência, mas eu me distraí
dele quando supus ouvir o fechar de uma das janelas que ficava em frente
à lareira, como se ela tivesse sido aberta furtivamente. Pareceu
seguir-se um zumbido que não era da máquina de fiar da velha. Não pude
ouvir bem, no entanto, pois a velha estava fiando vigorosamente, e o
relógio antigo soara as horas. Depois disso, perdi a sensação de que
haviam pessoas no local, e estava lendo intensa e tremulante quando o
velho voltou, calçado de botas e vestido numa roupa folgada antiga, e
sentou no mesmo banco, de forma que eu não podia vê-lo. Era certamente
uma espera nervosa, e o livro blasfemo nas minhas mãos a fazia duas
vezes maior. Quando soaram onze horas, entretanto, o velho se levantou,
deslizou até uma arca maciça esculpida que estava a um canto, e pegou
dois mantos encapuzados; um dos quais colocou, e com o outro cobriu a
velha, que tinha parado seu fiar monótono. Então os dois se dirigiram à
porta exterior; a mulher se arrastou, coxeando, e o velho, depois de
pegar o mesmo livro que eu estava lendo, acenou para mim enquanto
colocava o capuz sobre o rosto imóvel ou máscara.
Saímos para as ruas tortuosas e escuras daquela cidade incrivelmente
antiga; saímos enquanto as luzes nas janelas cortinadas desapareciam uma
a uma, e a estrela do Cão espreitava a turba de figuras cobertas e
encapuzadas que safam silenciosamente de cada porta e formavam uma
procissão monstruosa rua acima, passando pelas placas ruidosas, pelos
frontões antediluvianos, pelos telhados emaranhados e pelas janelas de
grades cruzadas; atravessando ruas precipituosas, onde casas decadentes
cobriam-se e desagregavam-se, deslizando por pátios abertos e cemitérios
de igrejas, onde postes de luz faziam as constelações parecerem
medonhamente bêbadas.
Em meio à multidão, segui meus dois guias silenciosos; empurrado por
cotovelos que pareciam extraordinariamente macios, e pressionado por
peitos e estômagos que pareciam anormalmente felpudos; mas sem nunca ver
um rosto e nunca ouvir uma palavra. Em frente, as colunas sinistras se
arrastavam, e eu vi que todos os peregrinos convergiam a uma espécie de
povo de becos loucos no topo de uma colina alta no centro da cidade,
onde se elevava uma grande igreja branca. Eu a tinha visto do alto da
estrada quando olhei a noite caindo em Kingsport, e ela me tinha feito
tremer, porque Aldebarã havia parecido balançar-se por um momento na
torre fantasmagórica.
Havia um espaço aberto ao redor da igreja; uma parte era um cemitério
com lápides espectrais, e a outra era uma quadra semipavimentada, que
tinha sido praticamente toda varrida da neve pelo vento, e enfileirada
com casas antigas e mal-conservadas, com telhados pontudos e frontões
protuberantes. Fogos-fátuos dançavam sobre as tumbas, revelando alamedas
repugnantes, embora estranhamente não fizessem sombra. Depois do
cemitério, onde não havia casas, podia ver acima do cume da colina e
observar o cintilar das estrelas no porto, pois a cidade era invisível
no escuro. Vez por outra, uma lanterna meneava horrivelmente através de
becos tortuosos, em seu caminho para juntar-se à turba, que agora estava
entrando furtiva e silenciosamente na igreja. Eu esperei até que a
multidão houvesse penetrado pela porta negra, e até que todos os que ali
se acotovelavam os tivessem seguido. O velho estava puxando minha
manga, mas eu estava determinado a ser o último. Atravessando a soleira
em direção ao templo de escuridão desconhecida e cheio como uma colméia,
virei-me uma vez para olhar o mundo exterior, onde uma fosforescência
no cemitério fazia um brilho doentio no pavimento da colina, e ao fazer
isso, estremeci. Pois embora o vento não houvesse deixado muita neve,
tinham sobrado umas poucas porções no terreno perto da porta; e naquela
olhada para trás, pareceu aos meus olhos confusos que não havia nenhuma
marca de pegadas, nem mesmo as minhas.
A igreja estava escassamente iluminada por todas as lanternas que
haviam sido trazidas pelos fiéis, e a maior parte da turba já havia
desaparecido. Eles tinham afluído para a nave entre os bancos altos e as
portas sem retorno das criptas, que se abriram repulsiva e largamente,
logo depois do púlpito, e estavam agora se contorcendo ruidosamente. Eu
segui, calado, os degraus gastos até a cripta escura e sufocante. O
séquito daquela fila silenciosa em marcha noturna me parecia muito
horrível, e eu os vi movendo-se sinuosamente ao interior de uma tumba de
veneração que parecia mais horrível ainda. Então notei que o chão da
tumba tinha uma fresta na qual a multidão se esgueirava, e em um
momento, todos nós estávamos descendo uma escadaria agourenta de pedra
bruta cortada; uma escadaria em espiral estreita, úmida e peculiarmente
perfumada, que perfurava interminavelmente em direção às entranhas da
colina, passando por paredes monótonas de blocos de pedras gotejantes e
argamassa esmigalhada. Foi uma descida traumatizante e silenciosa, e
depois de um intervalo horrível, percebi que as paredes e degraus
estavam mudando sua natureza, como se fossem cinzeladas da rocha sólida.
O que me perturbou principalmente foi que as miríades de passos não
faziam sons e não produziam ecos. Depois de uma descida que parecia
durar eras, vi algumas passagens laterais ou covas, que conduziam de
recantos desconhecidos de escuridão a esta trilha de mistério noturno.
Logo elas ficaram excessivamente numerosas, como catacumbas ímpias de
ameaças inomináveis; e seu odor pungente de decadência aumentava quase
insuportavelmente. Eu sabia que nós devíamos ter atravessado a montanha e
estávamos agora abaixo da própria Kingsport, e eu estremeci ao pensar
que uma cidade poderia ser tão velha e possuir subterrâneos tão
diabólicos.
Então vi o bruxulear lívido de uma luz pálida, e ouvi o marulho
insidioso de águas escuras. Novamente estremeci, porque eu não havia
gostado das coisas que a noite tinha trazido, e desejava amargamente que
nenhum antepassado tivesse me obrigado a este rito primitivo. À medida
que os degraus e a passagem ficavam mais largos, eu ouvi outro som, o
lamento agudo de uma flauta débil; e de repente surgiu na minha frente a
paisagem ampla de um mundo interior: uma costa fungosa e vasta,
iluminada por uma coluna que vomitava uma doentia chama esverdeada, e
banhada por um largo rio oleoso que fluía dos abismos assustadores e
desconhecidos para se juntar à baía negra do oceano antiqüíssimo.
Ofegando, à beira de desmaiar, olhei para o jardim profano de imensos
cogumelos, fogo leproso e água viscosa, e vi a turba encapada formando
um semicírculo ao redor do pilar em chamas Era o rito do Yule, mais
antigo do que o Homem, e fadado a sobreviver a ele; o rito primitivo do
solstício e a promessa de primavera após a neve; o rito do fogo e das
plantações, luz e música. E nas grutas estígias, eu os vi fazer o rito,
adorar o pilar doentio de chamas, e atirar na água punhados da vegetação
que reluziam verdes ao brilho clórico. Vi isso e algo agachado
amorficamente, distante da luz, tocando ruidosamente uma flauta; e
enquanto a coisa tocava, pensei ouvir sibilos nocivos e abafados na
escuridão inimiga onde eu não podia ver. Mas o que mais me aterrorizou
foi a coluna de chamas; brotando vulcanicamente das profundezas
inconcebíveis, sem produzir nenhuma sombra, como uma chama deveria
fazer, e agasalhando a rocha nitrosa com um azinhavre sórdido e
venenoso. Toda aquela combustão fervente não fazia nenhum calor, mas
apenas umidade de morte e decomposição.
O homem que tinha me trazido agora até um ponto diretamente ao lado
da chama odienta, fez passes cerimoniais rígidos para o semicírculo, à
sua frente. Em certos estágios do ritual, faziam reverências em que
tinham de se agachar, especialmente quando ele segurou acima de sua cabeça aquele detestável Necronomicon que trouxera
consigo; e eu compartilhei todas as reverências, porque eu tinha sido
convocado a este festival pelos escritos de meus ancestrais. Então o
velho fez um sinal ao flautista semi-oculto nas trevas, cujo toque logo
mudou de um zumbido fraco para um zumbido escasso mais alto em outra
escala; precipitando um horror inimaginável e inesperado. Com tal
horror, quase afundei na terra coberta de liquens, trespassado por um
temor que não pertencia a este ou a nenhum outro mundo, mas apenas aos
espaços enlouquecedores entre as estrelas.
Vindas da inimaginável escuridão além do fulgor gangrenoso da chama
fria, das léguas tartáricas pelas quais o rio oleoso corria
sobrenatural, oculta e obscuramente surgiu uma horda de seres alados e
híbridos domesticados, que nenhum olho são jamais poderia captar ou
nenhum cérebro normal jamais poderia recordar, batendo ritmicamente suas
asas. Eles não eram propriamente nem toupeiras, nem abutres, nem
formigas, nem morcegos vampiros, nem seres humanos decompostos, mas
alguma coisa que eu não posso e não devo recordar. Eles sacudiam um
pouco seus pés cobertos de teias e um pouco suas asas membranosas; e
quando alcançaram a turba de celebrantes, as figuras cobertas as pegaram
e montaram, e saíram, uma a uma, cavalgando ao longo da extensão
daquele rio mal-iluminado, em direção a poços e galerias de pânico onde
nascentes venenosas mantinham cataratas ocultas.
A velha fiandeira tinha ido com a turba, e o velho só ficara porque
eu tinha recusado quando ele tentou me motivar a pegar um animal e
cavalgá-lo como o resto. Eu vi, quando cambaleei sobre meus pés, que o
flautista amorfo havia desaparecido, mas aqueles dois monstros estavam
esperando pacientemente. Quando recuperei o equilíbrio, o velho tirou
seu estilete e a tabuleta e escreveu que ele era o representante dos
meus ancestrais que tinham fundado o culto do Yale neste local antigo;
que tinha sido decretado que eu voltaria, e que os mistérios mais
secretos ainda estavam para ser apresentados. Ele escreveu isso com mão
muito velha, e como eu ainda hesitava, puxou de sua túnica folgada um
anel e um relógio, ambos com os símbolos da minha família, para provar
que ele era o que dizia ser. Mas era uma prova revoltante, porque eu
sabia por papéis velhos, que o relógio tinha sido enterrado com meu
tatatataravo em 1698.
Em seguida, o velho tirou o capuz e apontou para a semelhança da
família em seu rosto, mas eu apenas estremeci, porque estava certo de
que aquele rosto era apenas uma máscara demoníaca. Os animais alados
estavam agora arranhando impacientemente os liquens, e eu vi que o velho
estava ele mesmo quase impaciente. Quando uma das coisas começou a se
mexer para ir embora, ele se virou rapidamente para detê-la; então seu
movimento repentino desalojou a máscara de cera de que outrora deve ter
sido sua cabeça. E então, porque aquela posição de pesadelo me barrava à
escada de pedra de onde tínhamos vindo, eu me joguei no rio oleoso que
borbulhava de algum lugar das cavernas até o mar; me joguei naquele suco
putrefato dos horrores do interior da Terra, antes que a loucura de
meus gritos trouxesse toda aquela legião mortuária que esses abismos
pestilentos ocultavam.
No hospital, disseram-me que eu havia sido encontrado semicongelado
no porto de Kingsport ao alvorecer, agarrado ao tronco flutuante que o
acaso mandou para me salvar. Eles me disseram que eu tinha pego a
bifurcação errada na estrada da colina na noite anterior e caído dos
penhascos no Ponto Laranja; uma coisa que deduziram das pegadas
encontradas na neve. Não havia nada que eu pudesse dizer, porque tudo
estava errado. Tudo estava errado, com as janelas largas mostrando um
mar de telhados nos quais apenas um em cinco era antigo, e o som de
bondes e motores nas ruas abaixo. Eles insistiram que esta era
Kingsport, e eu não podia negar. Quando fiquei delirante ao ouvir que o
hospital ficava perto do velho cemitério da igreja na colina central,
eles me mandaram ao Hospital Santa Maria, em Arkham, onde eu poderia ser
mais bem tratado. Gostei de lá, pois os médicos tinham mentes abertas, e
até me emprestaram sua influência para obter a cópia cuidadosamente
guardada de contestáveis Necronomicon de Al-hazred, da biblioteca da
Universidade de Miskatonic. Eles disseram alguma coisa sobre uma
“psicose”, e concordei que eu deveria tirar todas as obsessões mórbidas
de minha mente.
Lendo o hediondo capítulo, estremeci duplamente porque não era
realmente novo para mim. Eu o tinha visto antes, deixe as pegadas
dizerem o que eles quiserem; e seria melhor esquecer onde eu o tinha
visto. Não havia ninguém – nas horas diurnas – que poderia me lembrar
disso; mas meus sonhos eram cheios de terror, devido às frases que não
devo citar. Ouso citar apenas um parágrafo, traduzido em nossa língua
como posso, do estranho Baixo Latim.
As cavernas mais inferiores, escreveu o árabe louco, não são para a
compreensão dos olhos que vêem; pois suas maravilhas são estranhas e
terríveis. Amaldiçoado o chão onde pensamentos mortos.
Autor: H.P. Lovecraft
Curioso, não? E se ele tivesse usado uma das bestas voadoras? Ela parecia pacífica afinal, certamente o levaria tranquilamente. Para onde eles foram? Que climinha de aventura ein? É muito comum nas obras do autor existirem povos que interagem pacificamente com seres estranhos. Não deixe de conferir as várias obras do autor lançadas no Brasil.
1 Comentários
Lovecraft como sempre usando a palavra não dita, para tornar as coisas mais interessantes pela imaginação!
ResponderExcluirSeria legal que autores modernos revisitassem certos contos dele para dar mais detalhes sobre os mistérios (e criar outros maiores?)
De certa forma os contos de Lovecraft me lembram a série Souls de videogames, começando por Demons, e terminando em Bloodborne.