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O chamado de Cthulhu - Um épico dos contos de terror

É engraçado ver que essa matéria só foi escrita anos após a matéria de Os mitos de Cthulhu, publiquei tantos contos do autor H.P. Lovecraft, alguns deles eu mesmo traduzi. O mesmo para diversas análises de conteúdos relacionados, como filmes e jogos, além de referências das mais variadas. Porém existe um nome que se mantém no topo de todo o terror lovecraftiano, Cthulhu, e hoje finalmente chegou a hora de postar aqui.

Ao contrário do que muitos pensam "O chamado de Cthulhu" não é um livro, o que é uma surpresa para muita gente, afinal de contas como uma coisa tão influente e que chegou a um patamar tão alto a ponto de ter referência em todo lugar pode não ser um livro? Pois é, é apenas um conto, ou seja para aqueles que tem o problema de ter tanto entretenimento disponível que fica sufocado, saiba que nesse caso é um dos conhecimentos que você não precisa investir muito tempo, pois rapidamente pode ler.

Sua publicação foi escrito em 1926, e publicado originalmente em 1928 na revista Weird Tales, especializadas em contos fantásticos, e assim como a obra de Lovecraft em geral, ninguém ligou. Para terem uma ideia ele nem ao menos foi a capa do negócio, "The Call of Cthulhu" era apenas um dos vários contos, por outro lado o nome do escritor ao menos apareceu na parte de baixo da capa hehe.

A história é narrada por Francis Wayland Thurston, um homem que perdeu o tio e começou a investigar uma série de documentos deixadas para trás. No entanto esses documentos falavam sobre coisas muito estranhas, cultos macabros e um ser mais antigo que a humanidade, escondido em algum lugar da terra e só esperando o momento pra despertar.


Lovecraft nunca chegou a declarar, mas estudiosos que fuçam tudo quanto é literatura chegaram às conclusões de que ele teve uma série de referências, como é de se imaginar. Por exemplo o poema "O Kraken" (1830) do autor inglês Alfred Tennyson e que falava também de uma criatura submersa (baseado no ser lendário), assim como também aconteceu uma influência no conto "O Horla" (1887) do autor francês  Guy de Maupassant, apresentando um jornal investigativo.

Aqui embaixo tem uma tradução de "O chamado de Cthulhu" escrita pelo tradutor Viktor Chagas e que é oferecido como demonstração do livro O mundo Fantástico de H.P. Lovecraft, que contém uma enorme quantidade de contos e outras coisas traduzidas. E você pode obter no site da editora Clocktower. Agora confiram como ficou o trabalho dos caras:



O Chamado de Cthulhu 
Título original: The Call of Cthulhu (1926) 
Tradução: Viktor Chagas


(Encontrado entre os papéis do falecido Francis Wayland Thurston, de Boston)

“De tão grandes poderes ou seres é perfeitamente possível que haja uma reminiscência... uma reminiscência de um período remoto, quando... a consciência estava manifesta, talvez, em formas e contornos apagados desde antes da maré de avanço da humanidade... formas das quais apenas a poesia e a lenda, sozinhas, tenham captado uma memória esparsa e as denominado de deuses, monstros, seres míticos de todos os tipos e espécies... ” ¹

— Algernon Blackwood


I. O HORROR NA ARGILA


A COISA MAIS MISERICORDIOSA no mundo, eu acho, é a inabilidade da mente humana em correlacionar todos seus conteúdos. Nós vivemos em uma plácida ilha de ignorância no meio de um oceano negro infinito, e não era para que pudéssemos navegar para longe. As ciências, cada uma esticando a corda em sua própria direção, têm nos causado pouco mal até agora; mas algum dia esse mosaico de conhecimento dissociado nos legará um terrível panorama da realidade e de nossa amedrontadora posição neste lugar, tão terrível, que ficaremos loucos diante da revelação ou fugiremos covardemente da luz mortífera para a paz e a segurança de uma nova Idade Negra.

Os teosofistas especularam a respeito da impressionante grandeza do ciclo cósmico em que nosso mundo e a raça humana são apenas incidentes passageiros. Eles apontaram algo que congelaria nosso sangue se não estivesse mascarado por um suave otimismo. Mas não é deles que advém o único vislumbre de eternidades proibidas que me causa calafrios só de pensar, e me enlouquece quando eu sonho. O vislumbre de que falo, como o fazem todos os vislumbres terríveis da verdade, arrebatou-me em um quebra-cabeça montado acidentalmente — cujas peças principais eram um artigo de jornal velho e as notas de um professor já falecido. Torço para que ninguém mais seja capaz de montar esse quebra-cabeça. Eu mesmo, se viver, certamente nunca mais alimentarei um vínculo assim em tão nefasta cadeia. Eu penso que o professor também pretendeu manter silêncio sobre o quanto ele sabia, e que ele teria destruído suas notas se uma morte súbita não o houvesse detido.

¹ “Of such great powers or beings there may be conceivably a survival... a survival of a hugely remote period when... consciousness was manifested, perhaps, in shapes and forms long since withdrawn before the tide of advancing humanity... forms of which poetry and legend alone have caught a flying memory and called them gods, monsters, mythical beings of all sorts and kinds...”. Extraído do Capítulo X da novela The Centaur de Algernon Blackwood (1869-1951). Blackwood nasceu em Shooter’s Hill, Inglaterra, de origens nobres foi considerado um dos maiores autores de horror do começo do século XX. Admirado por Lovecraft, que dizia que seu conto The Willows, de 1907, era “O melhor conto fantástico jamais escrito...”. (N. do T.)

Meu conhecimento da coisa começou no inverno de 1926-27 com a morte de meu tio-avô, George Gammell Angell, Professor Emérito de Idiomas Semíticos na Brown University, em Providence, Rhode Island. O professor Angell era amplamente conhecido como uma autoridade em inscrições antigas, e a ele recorrera frequentemente os diretores de proeminentes museus, de forma que o transcurso dele à idade de noventa e dois anos deve ser recordado por muitos. Em âmbito local, o interesse foi intensificado pela obscuridade da causa de sua morte. O professor fora atingido ainda voltando do barco de Newport; caindo repentinamente, como afirmaram as testemunhas, depois de ter sido empurrado por um negro em trajes náuticos, que teria surgido de um beco sombrio e esquisito na ladeira íngreme que ligava uma pequena trilha da zona portuária à casa do falecido na Williams Street. Os médicos não puderam encontrar qualquer disfunção visível, mas concluíram depois de um perplexo debate que alguma lesão obscura do coração, induzida pela subida enérgica de uma ladeira íngreme como aquela por um senhor já de idade, era responsável pelo óbito. À época eu não vi razão alguma para divergir desse diagnóstico, mas recentemente estou inclinado a imaginar — e mais que imaginar.

Como herdeiro e testamenteiro de meu tio-avô, uma vez que ele morreu viúvo e sem filhos, eu devia me inteirar acerca de seus documentos com um pouco de eficácia; e, com este propósito, levei todos os seus arquivos e caixas para minha residência em Boston. Grande parte do material que eu pesquisei será mais tarde publicado pela American Archaeological Society, mas no meio de tudo havia uma caixa que eu achei profundamente intrigante, e a qual eu me senti bastante contrafeito em expor a outros olhos. Tinha sido fechada, e eu não pude achar a chave; até que me ocorreu examinar o molho de chaves pessoal que o professor levava em seu bolso. Então, consegui abri-la de fato, mas, quando o fiz, parecia apenas estar diante de um obstáculo maior e mais bem guardado. Qual seria o significado daqueles estranhos baixos-relevos em argila, dos rabiscos, devaneios e recortes que encontrei? Havia meu tio, em seus últimos anos de vida, se tornado crédulo dos mais superficiais embustes? Resolvi procurar o escultor excêntrico responsável por esta aparente perturbação na paz de espírito de um velho.

O baixo-relevo era um retângulo áspero com menos que uma polegada de espessura e aproximadamente cinco por seis polegadas de área; obviamente de origem moderna. Seu desenho, no entanto, estava longe de ser moderno em atmosfera e sugestão; de modo que embora os caprichos do cubismo e do futurismo sejam muitos e selvagens, eles raramente reproduzem aquela regularidade críptica que está à espreita na escrita pré-histórica. E a algum tipo de escrita a grandeza daqueles desenhos parecia pertencer; ainda que minha memória, apesar de muita familiaridade com os documentos e coleções de meu tio, tenha falhado nas diversas tentativas de identificar esta espécie particular ou mesmo apontar suas associações mais remotas.

Sobre estes aparentes hieróglifos estava uma figura de evidente propósito pictórico, conquanto a execução impressionista proibisse uma ideia muito clara de sua natureza. Parecia ser um tipo de monstro, ou símbolo representando um monstro, com uma forma que somente uma imaginação doentia poderia conceber. Se eu disser que minha extravagante fantasia trouxe os quadros simultâneos de um polvo, um dragão, e uma caricatura humana, eu não estaria sendo infiel ao espírito da coisa. Uma cabeça polpuda e cheia de tentáculos sobrepujou um corpo grotesco e escamoso com asas rudimentares; mas era o esboço geral do todo que fez a imagem tão chocantemente amedrontadora. Atrás da figura havia uma vaga sugestão de um fundo arquitetônico ciclópico.

A escritura que acompanhava esta aberração estava, com exceção de uma pilha de recortes de jornal, manuscrita na caligrafia mais recente do professor Angell; e não tinha pretensão de estilo literário. O que parecia ser o documento principal intitulava-se Culto a Cthulhu em caracteres esmeradamente impressos para evitar a leitura errônea de uma palavra tão inusitada. Esse manuscrito era dividido em duas seções: a primeira intitulada 1925 — Sonho e Trabalho dos Sonhos de H. A. Wilcox, Thomas Street nº 7, Providence, R. I., e a segunda; Narração do Inspetor John R. Legrasse, Bienville Street nº 121, New Orleans, La., em 1908 A. A. S. Mtg. — Notas do Mesmo, & Depoimento do professor Webb. Os outros documentos manuscritos eram apenas notas breves, algumas delas citações de livros teosóficos e revistas (notavelmente de Atlantis e Lost Lemuria, de W. Scott-Elliot), e o resto comentava sobre a longa sobrevivência de sociedades secretas e cultos secretos, com referências a passagens em livros de mitologia e antropologia como The Golden Bought², de Frazer, e Witch-Cult in Western Europe³, da Senhorita Murray. Os recortes aludiam repetidamente a uma atroz enfermidade mental e erupções de loucura coletiva ou mania na primavera de 1925. A primeira metade do manuscrito principal contava uma história muito peculiar. Parece que em 1º de março de 1925, um jovem magro, sombrio, de aspecto neurótico e exaltado tinha procurado o professor Angell portando o singular detalhe de argila em baixo- relevo, o qual estava então extremamente úmido e fresco. Seu cartão indicava o nome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio o reconheceu como sendo o filho mais jovem de uma boa família da qual ele tinha ligeiramente ouvido falar, e que nos últimos anos esteve estudando escultura na Rhode Island School of Design e vivia sozinho no Edifício Fleur-de-Lys próximo à instituição¹*. Wilcox era um talento precoce de gênio reconhecido, mas bastante excêntrico, e desde a infância chamava atenção pelas estranhas histórias e esquisitos sonhos que costumava relatar. Ele se autoproclamava “psiquicamente hipersensível”, mas o povo ríspido da antiga cidade comercial o rejeitava como uma mera “aberração”, nunca tendo se entrosado muito com um tipo como aquele. O rapaz desapareceu gradativamente das vistas da sociedade, e acabou se relacionando apenas com um pequeno grupo de estetas de umas outras cidades. Até mesmo o Providence Art Club, preocupado em preservar seu conservadorismo, não entendia ele muito promissor.

² The Golden Bought: A Study in Magic and Religion (1890) de Sir James George Frazer (1854-1941), é um amplo estudo comparativo da mitologia e da religião. (N. do T.)

³ A antropóloga britânica Margaret Alice Murray (1863-1963) publicou em 1921 o livro citado, onde defende a tese de que o culto às bruxas, tanto na Europa quanto na América, tem origem numa raça pré-ariana que foi impelida para um mundo subterrâneo, mas continua à espreita em cantos escondidos da Terra. Seus estudos foram fundamentais para inspirar os movimentos que deram origem a Wicca. (N. do T.)

Na ocasião da visita, de acordo com o que discorria o manuscrito do professor, o escultor pediu abruptamente algumas informações sobre o hieróglifo em baixo-relevo aproveitando-se do conhecimento arqueológico de seu anfitrião. Ele falou de uma maneira tão fantasiosa e afetada que meu tio foi acometido por um certo deslumbre e uma simpatia impensada, e mostrou-lhe um pouco de sua aguçada prática respondendo que o visível viço da tabuleta indicava que o objeto poderia ter um parentesco com qualquer área de estudo, menos a arqueologia. A réplica do jovem Wilcox, que impressionou meu tio o suficiente para fazê-lo recordar o caso e registrá-lo textualmente, tinha uma disposição fantasticamente poética que deve ter caracterizado todo o diálogo, e que a meu ver parece ser uma de suas grandes particularidades. Ele disse, “É novo, na verdade. Eu o fiz ontem à noite a partir de um sonho com umas cidades estranhas; e sonhos são mais velhos que o ascético reino de Tiro, ou a pensativa Esfinge, ou a Babilônia cercada de jardins”.

Foi então que ele começou aquela divagação que de repente mexeu com uma memória latente e ganhou o fervoroso interesse de meu tio. Houve um leve terremoto na noite anterior, o mais consideravelmente percebido na Nova Inglaterra desde alguns anos; e as crendices de Wilcox foram intensamente afetadas. Em seu retraimento, tivera um sonho sem precedentes com grandes cidades ciclópicas de blocos titânicos e monólitos arremessados do céu, todos gotejando um limo verde e de horror sinistro e dissimulado. Hieróglifos haviam coberto as paredes e as colunas, e de algum indeterminado ponto abaixo veio uma voz que não era uma voz; uma sensação caótica que somente a imaginação poderia ter transmudado em som, mas que ele se empenhou em interpretar como uma confusão quase impronunciável de letras: Cthulhu fhtagn.

¹* Esta casa-estúdio foi criada pelo artista de Providence, R.I., Sydney Richmond Burleigh e de fato ainda existe na Thomas Street nº 77 nessa mesma cidade. Foi utilizada como inspiração para esta história. (N. do T.)

Essa confusão verbal era a chave para a recordação que exaltou e perturbou o professor Angell. Ele interrogou o escultor com exatidão científica; e estudou com uma intensidade quase frenética o baixo-relevo no qual o jovem se achou trabalhando, vestido e agasalhado apenas com sua roupa de dormir, quando a vigília acabou lhe falando mais alto. Meu tio amaldiçoou sua muita idade, Wilcox disse posteriormente, por sua lentidão em reconhecer ambos os desenhos, o hieroglífico e o pictórico. Muitas das perguntas dele pareciam claramente despropositadas para o visitante, especialmente aquelas que tentavam conectar a representação com cultos ou sociedades estranhas; e Wilcox não pôde entender as repetidas promessas de silêncio em troca das quais lhe era oferecida admissão como membro em algum corpo religioso místico ou pagão. Quando o professor Angell se convenceu de que o escultor de fato ignorava qualquer tipo de culto ou sistema de sabedoria secreto, ele assediou o visitante com demandas de relatórios de futuros sonhos. A insistência regular deu frutos, de maneira que depois da primeira entrevista o manuscrito passa a registrar visitas diárias do jovem, durante as quais ele relatou surpreendentes fragmentos de devaneios noturnos cujo fardo era sempre algum terrível panorama ciclópico de uma rocha sombria e gotejante, com uma inteligência ou voz subterrânea gritando monotonamente e economizando as palavras em vibrações intraduzíveis. Os dois sons mais freqüentemente repetidos são os que se conformam nas letras Cthulhu e R’lyeh.

Em 23 de março, continuou o manuscrito, Wilcox não apareceu; e investigações em seus aposentos revelaram que ele havia sido acometido por um tipo obscuro de febre e foi levado para a casa de sua família na Waterman Street. Ele havia berrado durante a noite, despertando vários outros artistas no edifício, e apresentou desde então apenas alternância entre inconsciência e delírio. Meu tio, certa feita, telefonou à família, e daquela vez em diante manteve o caso sob um olhar atento; indo regularmente ao escritório do doutor Tobey — o qual ele descobriu estar encarregado de cuidar da situação — na Thayer Street. A mente febril do jovem, aparentemente, ocupava-se de coisas estranhas; e o doutor vez em quando estremecia só de ouvi-lo falar delas. Elas não só incluíam uma repetição do que ele havia sonhado anteriormente, mas também falavam absurdamente de uma coisa gigantesca que perambulava ou se amontoava “milhas acima”. Ele, em momento nenhum, descreveu de forma completa o objeto, mas algumas ocasionais palavras delirantes, como repetiu o doutor Tobey, convenceram o professor de que deveria ser idêntico à monstruosidade sem nome que ele buscou descrever em sua escultura onírica. Quanto à questão, acrescentou o médico, invariavelmente era um prelúdio, em homens jovens, de relaxamento da letargia. De maneira muito curiosa a temperatura não estava muito acima do normal, mas todo o quadro sugeria autêntica febre em vez de transtorno mental.

No dia 2 de abril, aproximadamente às 3 da tarde, todos os sintomas da enfermidade de Wilcox cessaram repentinamente. Ele sentou-se reto na cama, surpreso por se achar em casa e ignorando completamente o que havia acontecido fosse sonho ou realidade desde a noite de 22 de março. Como bem declarou seu médico, ele retornou aos seus aposentos três dias mais tarde; mas para o professor Angell ele não tinha mais tanta serventia. Todos os traços dos estranhos sonhos tinham desaparecido com sua recuperação, e meu tio não manteve registro dos pensamentos noturnos dele depois de uma semana de despropositados e irrelevantes relatos de visões absolutamente comuns.

Aqui terminava a primeira parte do manuscrito, mas certas referências a algumas notas dispersas me deram mais material para pesquisar. Na verdade, tanto, que só o ceticismo inveterado que então era minha filosofia de vida podia responder por minha desconfiança continuada no tal artista. As notas em questão eram aquelas descrições dos sonhos de várias pessoas, cobrindo o mesmo período no qual o jovem Wilcox tivera as suas estranhas visitações. Meu tio, ao que parece, deu rapidamente início a um prodigioso banco de informações construído a partir dos relatórios noturnos dos sonhos de praticamente todos os amigos a quem ele poderia questionar sem impertinência, e as datas de quaisquer visões que já tivessem tido. A recepção ao pedido parece ter sido diversa; mas ele deve, ao menos, ter recebido mais respostas do que qualquer homem comum poderia ter acolhido sem uma secretária. Os originais dessa correspondência não foram preservados, mas as suas anotações formam um meticuloso e significante compêndio. Em média, as pessoas dos negócios e da sociedade — o tradicional “sal da terra” da Nova Inglaterra — apresentaram um resultado quase que completamente negativo, apesar de casos de impressões desconfortáveis, mas grosseiras terem surgido esparsamente aqui e acolá, sempre entre 23 de março e 2 de abril — o período do delírio do jovem Wilcox. Homens de ciência eram um pouco mais afetados, embora quatro casos de vaga descrição sugerissem relances passageiros em estranhas paisagens, e em um caso fosse mencionado um medo de algo sobrenatural. Foi dos artistas e poetas que as respostas mais pertinentes vieram, e eu sei que o pânico teria se disseminado caso eles fossem capazes de comparar as notas. Do modo como o fiz, desprovido das cartas originais, eu meio que suspeitei que o compilador pudesse ter organizado em tópicos principais as perguntas, ou editado a correspondência corroborando o que ele inconscientemente estava determinado a enxergar. Essa é a razão por que eu continuei sentindo que Wilcox, de alguma maneira ciente dos antigos dados que meu tio possuía, tirou proveito do veterano cientista. Essas respostas de estetas revelavam uma história perturbadora. De 28 de fevereiro a 2 de abril, eles sonharam, em larga escala, com coisas bizarras. A intensidade dos sonhos se tornava incomensuravelmente mais forte durante o período do delírio do escultor. Mais de um quarto desses que relataram alguma coisa relataram cenas e meio-sons não muito diferentes dos que Wilcox havia descrito; e alguns dos sonhadores confessaram medo agudo da gigantesca coisa sem nome visível segundo ele. Um caso, que as notas descrevem com ênfase, foi muito triste. O sujeito, um arquiteto de renome com inclinações à teosofia e ocultismo, ficou violentamente insano na data do ataque apoplético do jovem Wilcox, e faleceu vários meses depois, após incessantes gritos para ser salvo de algum habitante foragido do inferno. Tivesse meu tio se referido a estes casos através do nome em vez do número de registro, eu teria partido para alguma confirmação e investigação pessoal; mas como estava, eu só tive sucesso em localizar de fato alguns. Todos, porém, testemunharam a favor do que diziam as anotações. Eu desejei ardentemente saber se todos os alvos das perguntas do professor teriam se sentido tão confusos quanto essa pequena fração. É certo que jamais alguma explicação chegará até eles.

Os recortes de jornais, como eu sugeri, mencionavam casos de pânico, mania, e excentricidade durante o dado período. O professor Angell deve ter contratado um escritório para assessorá-lo, uma vez que o número de extratos era tremendo e as fontes dispersas ao redor do globo. Havia um suicídio noturno em Londres, onde um solitário sonâmbulo tinha saltado de uma janela depois de um grito chocante. Havia igualmente uma carta digressiva para o editor de um jornal na América do Sul, na qual um fanático deduzia um futuro medonho de visões que ele teria visto. Um comunicado da Califórnia descreveu uma colônia de teosofistas vestindo paramentos brancos para alguma “gloriosa realização” que nunca aconteceu, enquanto artigos da Índia falavam cautelosamente de uma séria inquietação dos nativos diante da passagem de 22 para 23 de março. O oeste da Irlanda, também, estava repleto de rumores selvagens e de muitas lendas, e um fantástico pintor chamado pelo nome de Ardois-Bonnot exibiu uma blasfemante ‘Paisagem de Sonho’ no Salão de Primavera de Paris de 1926. E tão numerosas são as dificuldades registradas em manicômios, que só um milagre pode ter impedido a fraternidade médica de traçar paralelos e tecer conclusões místicas a respeito. Uma série misteriosa de acontecimentos, diziam todos; e eu, nessa altura, mal posso encarar o racionalismo insensível com o qual eu os pus de lado. Mas eu estava, então, convencido de que o jovem Wilcox tinha conhecimento dos antigos assuntos mencionados pelo professor.




II. O RELATO DO INSPETOR LEGRASSE


Os assuntos antigos que haviam tornado o sonho do escultor e o detalhe em baixotão significante para meu tio eram o objeto da segunda metade de seu longo manuscrito. Certa vez, ao que parece, o professor Angell vira os esboços infernais da monstruosidade sem nome, ficara transtornado com os hieróglifos desconhecidos, e ouvira as agourentas sílabas que podem ser traduzidas como Cthulhu; e tudo isso foi se ligando tão horrível e assustadoramente com ele que não é surpresa que tenha ido atrás do jovem Wilcox com mais questões e demandando dados.

Essa experiência anterior viera em 1908, dezessete anos antes, quando a American Archaeological Society celebrou sua conferência anual em St. Louis. O professor Angell, como admitiu uma de suas destacadas autoridades, tivera um papel proeminente em todas as deliberações; e era o mais abordado pelo público interessado, que aproveitava a assembleia para propor problemas para serem corretamente respondidos e solucionados pelos especialistas.

O homem que tomou à frente do público interessado, e em poucos minutos foi o foco de interesse de toda a conferência, era um homem comum de meia-idade que tinha viajado horas de New Orleans até lá na esperança de obter certa informação especial de difícil acesso sobre a qual não havia nenhum meio de pesquisar em fontes locais. O nome dele era John Raymond Legrasse, e sua profissão era inspetor de polícia. Com ele, estava o tema de sua visita, uma grotesca, repulsiva, e aparentemente muito antiga estatueta de pedra, cuja origem ele não sabia precisar. Não se deve supor que o inspetor Legrasse tivesse interesse em arqueologia. Ao contrário. Seu desejo de obter esclarecimentos foi instigado por considerações puramente profissionais. A estatueta, ídolo, fetiche, ou o que quer que fosse, havia sido apreendido alguns meses antes nos bosques pantanosos do sul de New Orleans durante uma batida policial em uma suposta reunião de feiticeiros; e tão singulares e hediondos eram os ritos ligados a ele, que a polícia só pôde deduzir que haviam deparado-se com um culto misterioso totalmente desconhecido, e infinitamente mais diabólico que o mais negro círculo de feitiçaria africana. De sua origem, exceto pelas histórias inacreditáveis e contraditórias dos membros capturados da seita, nada foi descoberto; daí a aflição dos policiais em obter qualquer instrução sobre peças de antiquário que pudesse ajudá-los a determinar a procedência do símbolo assustador, e desse modo seguir a pista do culto até que localizassem a sua origem.

O inspetor Legrasse não estava de todo preparado para a sensação que seu relato provocou. Um pequeno vislumbre da coisa foi o bastante para lançar os homens de ciência reunidos ali a um estado de tensa euforia, e, sem perder tempo, eles foram se aglomerando ao redor dele para contemplar a figura diminuta cuja estranheza absoluta e ar de antiguidade genuinamente inexplicável os levou tão potentemente a visões arcaicas e cerradas. Nenhuma escola reconhecida de escultura havia dado vida àquele terrível objeto, contudo centenas e mesmo alguns milhares de anos pareciam registrados em sua superfície de pedra escura, esverdeada e enigmática.

A figura que, afinal, foi passada lentamente de homem a homem a fim de que se pudesse estudá-la cuidadosamente mais de perto, tinha entre sete e oito polegadas de altura, e um requintado trabalho artístico artesanal. Ela representava um monstro com formas que lembravam vagamente as de um antropóide, mas com a cabeça semelhante a um polvo e de cuja face pendia uma massa de tentáculos, um corpo escamoso, como se fosse de borracha, garras prodigiosas nas patas traseiras e dianteiras, com evidência de pés, e longas e estreitas asas na parte posterior. Essa coisa, que o instinto dizia ser algo temível e maligno, era de uma corpulência meio inchada, e ficava acocorada em um bloco retangular ou uma espécie de pedestal coberto com caracteres indecifráveis. As pontas das asas tocavam a parte traseira do bloco, o assento ocupava o centro, enquanto as garras longas, encurvadas para baixo, apoiadas sobre as patas posteriores, agarravam a extremidade anterior e estendiam-se rusticamente em um quarto da altura do pedestal. A cabeça cefalópode inclinava-se para frente, de forma que as pontas dos barbilhões faciais tocavam as enormes patas dianteiras, que, por sua vez, prendiam os joelhos erguidos da criatura agachada. O aspecto da figura era anormalmente natural e o mais sutilmente amedrontador devido a sua origem completamente desconhecida.

Sua vasta, impressionante e incalculável idade era inequívoca; não obstante não aparentasse conexão com alguma arte concernente à aurora da civilização — ou mesmo a outra era. Por outro lado, o próprio material que a constituía era um mistério; pois a pedra preto-esverdeada besuntada com dourados e iridescentes salpicos e estrias não se parecia com algo familiar no campo da geologia ou da mineralogia. Os caracteres ao longo da base eram igualmente desconcertantes; e nenhum sócio presente, com exceção de uma representação de metade dos peritos e especialistas do mundo nesse campo, tinha noção de seu mais remoto parentesco linguístico. Eles, da mesma forma que a figura e o material, pertenciam a algo horrivelmente distante e diferente do gênero humano como o conhecemos. Algo ameaçadoramente sugestivo, de antigos e profanos ciclos de vida nos quais o nosso mundo e as nossas concepções não têm vez. E então, como os membros respectivamente sacudiram a cabeça e se deram por vencidos em relação ao tal problema do inspetor, houve um homem, na assembleia que suspeitou de um toque de bizarra familiaridade na forma e na escrita monstruosa do artefato, e que, no mesmo instante, contou, não sem nenhum acanhamento, o pequeno boato que ele conhecia. Essa pessoa era o falecido William Channing Webb, professor de antropologia na Princeton University, e um explorador de renome. O professor Webb fizera parte, quarenta e oito anos antes, de uma excursão à Groenlândia e Islândia em busca de algumas inscrições rúnicas que ele não foi capaz de encontrar; quando lá próximo à costa da Groenlândia Ocidental tinham encontrado uma tribo singular ou um culto degenerado de esquimós, cuja religião, uma curiosa forma de adoração ao demônio, gelou sua alma com sua deliberada sede de sangue e repulsividade. Era uma crença da qual os outros esquimós pouco tinham conhecimento, e que mencionavam-na com certa aflição, dizendo que aquilo tinha sido herdado de eternidades horrivelmente arcaicas, antes mesmo de o mundo ter sido feito. Além de ritos sem nome e sacrifícios humanos havia estranhas cerimônias hereditárias voltadas a um supremo ancião demoníaco ou tornasuk; e, disto o professor Webb tirou uma cópia fonética cuidadosa de um antiquíssimo angekok ou mago-sacerdote, expressando os sons em letras romanas o melhor que podia. Nesse ponto, era importantíssimo o fetiche que essa seita tinha cultivado, e ao redor do qual os idólatras dançavam quando a aurora saltava alto acima dos penhascos de gelo. Era, declarou o professor, um detalhe de pedra em baixo- relevo, bastante cru, incluindo uma imagem medonha e algumas escrituras codificadas. E tanto quanto ele pôde contar, havia um áspero paralelo, em seus aspectos essenciais, entre aquilo e a coisa bestial que agora estava diante deles na reunião.

Esse dado, recebido com suspense e surpresa pelos membros reunidos, mostrou-se duplamente excitante ao inspetor Legrasse; e ele começou imediatamente a questionar seu informante com mais afinco. Tendo anotado e copiado um ritual oral entre os fiéis da seita do pântano, que seus homens tinham prendido, ele suplicou ao professor que se lembrasse o melhor possível quais as sílabas tiradas dos esquimós satanistas. Então o que se seguiu foi uma exaustiva comparação de detalhes, e um momento de verdadeiro silêncio taciturno quando tanto o detetive quanto o cientista concordaram a respeito da identidade virtual da frase comum a dois rituais infernais separados por muitos mundos de distância. Que, tanto os feiticeiros esquimós quanto os sacerdotes do pântano da Louisiana tinham recitado aos seus ídolos afins algo como — tendo as divisões em palavras sido conjeturadas a partir das pausas tradicionais na frase conforme ela foi recitada em voz alta:


“Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.”


Legrasse tinha uma vantagem em relação ao professor Webb, por ter estado muito tempo entre seus prisioneiros mestiços, pois vários de seus prisioneiros mestiços haviam repetido para ele o que os antigos celebrantes lhes disseram que as palavras significavam. Este texto, de acordo com o que foi dado, discorria mais ou menos assim:


“Em sua morada em R’lyeh o adormecido Cthulhu aguarda sonhando.”


E agora, em resposta a uma demanda geral e urgente, o inspetor Legrasse relatou, tão completa quanto possível, sua experiência com os adoradores do pântano; contando uma história para a qual, eu pude perceber, meu tio atribuiu profunda significação. Ela tinha o aroma dos sonhos mais selvagens de construtores de mitos e teosofistas e revelava um grau surpreendente de imaginação cósmica entre tais miscigenados e párias maior que o esperado.

Em 1º de novembro de 1907, um chamado frenético levou a polícia de New Orleans à região pantanosa e lagoas ao sul. Os posseiros de lá, a maioria primitivos, mas descendentes diretos dos homens de Lafitte¹, estavam sob domínio do mais puro terror em vista de uma coisa que havia se aproximado deles à noite. Era um vodu, aparentemente, mas o tipo de vodu mais terrível já noticiado; e algumas das suas mulheres e crianças haviam desaparecido, desde que o malévolo tantã começara seu batuque incessante bem longe, dentro da floresta mal-assombrada onde nenhum homem se aventurou. Havia berros insanos e gritos horripilantes, cantos que davam calafrios e danças diabólicas à luz das chamas; e o mensageiro assustado completou que as pessoas não podiam aguentar mais aquilo. Então, um corpo de vinte policiais, lotando duas carruagens e um automóvel, partiu, no fim da tarde, com o posseiro assustado como guia. Ao término da estrada pavimentada eles desceram, e chafurdaram no silêncio, entre os terríveis bosques de ciprestes onde o dia jamais alcançou. Raízes horríveis e festões retorcidos e malignos de musgo espanhol² os cercavam, e, de vez em quando, uma pilha de pedras úmidas ou um fragmento de uma parede apodrecida intensificavam, com sua insinuação de habitação mórbida, uma atmosfera criada pelo conjunto de cada árvore malformada e cada ilhota de fungos. Enfim, o acampamento dos posseiros, um ajuntamento miserável de cabanas, uma visão nauseante; e moradores histéricos correram para se juntar ao grupo de lampiões balouçantes. A batida abafada de tantãs era agora debilmente audível ao longe, muito longe; e um grito agudo horripilante vinha em raros intervalos quando o vento mudava. Um clarão avermelhado também parecia se infiltrar através da pálida vegetação rasteira para além das avenidas infinitas de escuridão florestal. Relutantes em serem deixados novamente sozinhos, cada um dos amedrontados posseiros recusou, de pronto, avançar outra polegada em direção à cena de adoração profana. Então o inspetor Legrasse e os seus dezenove colegas mergulharam, às cegas, em escuras galerias de horror em que nenhum deles havia pisado.

¹ Jean Lafitte (1780-1826), líder militar e contrabandista que lutou no bando dos rebeldes das colônias durante a Guerra da Independência Americana. (N. do T.)

² Erva utilizada em feitiçaria. (N. do T.)
A região agora invadida pela polícia era de reputação tradicionalmente má, substancialmente desconhecida e jamais atravessada por homens brancos. Havia lendas de um lago oculto nunca vislumbrado por olhos mortais, no qual habitava uma imensa, disforme coisa branca poliposa com olhos luminosos; e os posseiros sussurravam que demônios com asas de morcego voavam de um lado a outro, saído das cavernas no interior da terra, para adorá-la à meia- noite. Eles disseram que a coisa estava lá desde antes de D’Iberville³, antes de La Salle¹*, antes dos índios, e antes mesmo de algumas feras e pássaros dos bosques. Era o próprio pesadelo, e vê-la significava morrer. Mas ela fazia os homens sonharem, e então eles sabiam demais para irem embora. A tal orgia de feitiçaria era, na verdade, na mais simplória orla dessa área abominável, mas aquele lugar era ruim o suficiente; por esse motivo só o lugar do culto já assustava os posseiros, mais que os sons chocantes e os próprios incidentes.


Só a poesia ou a loucura poderiam fazer jus aos ruídos ouvidos pelos homens de Legrasse à medida que eles abriam caminho no pântano negro em direção à rubra clareira e ao som abafado dos tantãs. Há timbres vocais peculiares aos homens, e timbres vocais peculiares às bestas; e é terrível ouvir um quando a origem deveria ser o outro. Nesse ponto, a fúria animal e a promiscuidade orgiástica atingiam alturas demoníacas com uivos e gritos de prazer que rasgavam e reverberavam naquela floresta sombria, como tempestades pestilenciais dos golfos do inferno. Uma vez ou outra o ulular caótico cessava e, do que parecia um bem-ensaiado coral de vozes roucas, se erguia em um canto melopeico aquela frase ou ritual hediondo:


“Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.”


Então os homens, tendo alcançado um claro ponto onde as árvores eram mais escassas, subitamente avistaram o espetáculo com os próprios olhos. Quatro deles se sentiram mal, um desfaleceu, e dois caíram em um pranto desesperado com a cacofonia ensandecida da orgia, que felizmente se atenuou. Legrasse jogou água do pântano na face do homem desfalecido, e todos ficaram de pé, tremendo e praticamente hipnotizados de horror.

³ Iberville, sieur d’ (Pierre Le Moyne) (1661-1706), explorador famoso e um dos fundadores do Estado Americano da Louisiana. (N. do T.)

¹* La Salle, René-Robert Cavelier (1643-1687), explorador francês famoso pela descoberta de um vale que viria a ser a atual Louisiana. (N. do T.)

Em um descampado natural do pântano havia uma ilhota coberta de relva de talvez um acre de extensão, livre de árvores e toleravelmente seca. Sobre ela, nesse momento, saltava e serpenteava a mais indescritível horda de anormalidade humana que somente um Sime ou um Angarola poderia retratar²* . Destituídos de roupa, essa prole híbrida zurrava, bramindo e contorcendo-se ao redor de uma monstruosa fogueira anelar; no centro da qual, revelado por ocasionais brechas na cortina de chamas, estava um enorme monólito de granito de bons oito pés de altura; no topo do qual, incongruente por sua forma diminuta, repousava a pérfida estatueta talhada. De um amplo círculo de dez cadafalsos dispostos em intervalos regulares, em cujo centro pendia o flamejante monólito, estavam, de cabeça para baixo, os corpos estranhamente mutilados dos indefesos posseiros que haviam desaparecido. Era no interior deste círculo que o anel de adoradores pulava e urrava, o sentido do movimento da multidão indo da esquerda à direita em um bacanal sem fim entre o anel de corpos e o anel de fogo.

Pode ter sido apenas imaginação e podem ter sido apenas ecos que induziram um dos homens, um irrequieto espanhol, a fantasiar que havia ouvido respostas antifônicas ao ritual, de algum longínquo e sombrio ponto no interior da floresta de antiga lenda e horror. Esse homem, Joseph D. Galvez, eu encontrei posteriormente e o interroguei; e ele se mostrou perturbadamente imaginativo. Na verdade, foi até longe demais como quando mencionou um fraco farfalhar de grandes asas, e o relancear de olhos brilhantes e um montanhoso vulto branco além da árvore mais remota — mas eu tenho a impressão de que ele andou ouvindo muita superstição nativa.

De fato, a pausa horrorizada dos homens foi relativamente breve. O dever vem sempre primeiro; e embora devesse haver aproximadamente uma centena de mestiços celebrantes na aglomeração, a polícia confiou em suas armas de fogo e arremeteu determinadamente contra a asquerosa turba. Durante minutos o caos e o alarido resultantes foram indescritíveis. Golpes ferozes foram desferidos, projéteis foram atirados, e fugas foram feitas; mas no fim Legrasse podia contar cerca de quarenta e sete soturnos prisioneiros, os quais ele obrigou a vestirem-se com urgência e fazerem fila entre dois cordões de policiais. Cinco dos adoradores morreram, e dois gravemente feridos foram levados em macas improvisadas por seus colegas-prisioneiros. A imagem do monólito, obviamente, foi cuidadosamente removida e carregada por Legrasse.

²* Sidney Herbert Sime (1867-1945) e Anthony Angarola (1893-1929), ilustradores famosos e admirados por Lovecraft. (N. do T.)

Examinados no quartel-general depois de uma intensa jornada de tensão e cansaço, os prisioneiros todos provaram-se homens modestos, miscigenados, e de mentalidade aberrante. A maioria era de marinheiros, mas havia um punhado de negros e mulatos, um grande número de índios ocidentais ou portugueses de Brava, crioulos das ilhas de Cabo Verde, que davam um colorido de voduísmo ao culto heterogêneo. Mas antes que muitas perguntas fossem feitas, ficou claro que algo mais profundo e arcaico que o fetichismo negro estava envolvido. Degradados e ignorantes como eram, as criaturas mantiveram com surpreendente consistência a ideia central de sua abominável fé.

Eles adoravam, assim disseram, os Grandes Antigos que viveram eras antes de existir qualquer homem, e que vieram ao novo mundo descidos do céu. Aqueles Antigos haviam ido agora, adentro da terra e sob do mar; mas seus corpos mortos contaram seus segredos em sonhos aos primeiros homens, que então criaram um culto que nunca morreu. Esse era o tal culto, e os prisioneiros disseram que ele sempre existira e sempre existiria, oculto em ermos distantes e lugares sombrios ao redor do mundo até o momento em que o grande sacerdote Cthulhu, de sua casa sombria na pujante cidade de R’lyeh embaixo das águas, se ergueria e teria a terra novamente sob seu domínio. Algum dia ele atenderia ao chamado, quando as estrelas estivessem alinhadas, e o culto secreto estaria sempre esperando para libertá-lo.

Nesse instante nada mais podia ser dito. Havia um segredo que mesmo a tortura não poderia extrair. A humanidade não estava absolutamente só entre as coisas conscientes da terra, de modo que formas vinham da escuridão para visitar os poucos crédulos. Mas estes não eram os Grandes Antigos. Nenhum homem jamais vira os Antigos. O ídolo talhado era o grande Cthulhu, mas ninguém podia arriscar se os outros eram precisamente iguais a ele. Ninguém podia ler a velha inscrição agora, mas as coisas eram ditas de viva voz. O ritual entoado não era o segredo. Isso jamais era dito em voz alta, apenas sussurrado. O canto significava apenas isso:


“Em sua morada em R’lyeh o adormecido Cthulhu espera sonhando.”


Somente dois prisioneiros foram considerados sãos o suficiente para serem enforcados, e o resto foi confiado a várias instituições. Todos negaram tomar parte nos a assassinatos ritualísticos, e asseveraram que a matança havia sido realizada pelos Alados Negros que os alcançaram de seu ponto de encontro imemorial na floresta assombrada. Mas desses misteriosos aliados nenhum relato coerente pôde ser obtido. O que a polícia realmente extraiu veio, sobretudo de um mestiço imensamente envelhecido chamado Castro, que se gabava de ter navegado em portos estranhos e conversado com líderes imortais do culto nas montanhas da China.

O velho Castro lembrou algumas lendas medonhas que empalideceriam as especulações dos teosofistas e fariam o homem e o mundo parecerem algo recente e passageiro. Fazia eras que outras Coisas dominaram a terra, e Elas tiveram grandes cidades. Ruínas delas, ele disse que os imortais chineses lhe haviam contado, ainda podiam ser encontradas como pedras ciclópicas nas ilhas do Pacífico. Todas morreram vastas eras antes do homem chegar, mas havia algumas artes que podiam revivê-las quando as estrelas tiverem retornado às posições corretas no círculo da eternidade. Elas, na verdade, vieram sós das estrelas, e trouxeram suas imagens.

Esses Grandes Antigos, Castro continuou, não eram feitos de carne e sangue. Eles tinham forma — ou essa imagem das estrelas não havia provado isso? — mas tal forma não tinha substância. Quando as estrelas estivessem corretamente posicionadas, Eles poderiam saltar de mundo a mundo através do céu; mas quando as estrelas estivessem fora de sua posição, Eles não poderiam viver. Mas embora Eles não estivessem vivos, eles jamais poderiam realmente morrer. Todos Eles repousavam em casas de pedra em Sua grande cidade de R’lyeh, preservada pela magia do poderoso Cthulhu para uma gloriosa ressurreição quando as estrelas e a terra estivessem mais uma vez prontas para Eles. Mas nesse momento alguma força externa deveria servir para libertar Seus corpos. A magia que preservou-os intactos igualmente Os impedia de fazer o movimento inicial, e Eles podiam apenas despertar na escuridão e pensar, enquanto incontáveis milhões de anos se passavam. Eles sabiam tudo o que ocorria no universo, mas Seu modo de falar era por transmissão de pensamento. Mesmo agora Eles conversavam em Suas tumbas. Quando, depois de infinidades de caos, o primeiro homem surgiu, os Grandes Antigos falaram aos sensitivos entre eles modelando seus sonhos; pois somente assim podia a Sua linguagem alcançar as mentes primitivas carnais dos mamíferos.

Então, sussurrou Castro, aqueles primeiros homens criaram o culto ao redor dos pequenos ídolos que os Grandes Antigos lhes apresentaram; ídolos trazidos em épocas obscuras de estrelas sombrias. Aquele culto nunca morreria até que as estrelas se alinhassem novamente, e os sacerdotes secretos trouxessem o grande Cthulhu de Sua tumba para reassumir Seu lugar e restituí- los a Seus súditos e retomar Seu domínio da terra. O momento seria facilmente reconhecido, pois a humanidade teria se tornado como os Grandes Antigos; livre e feroz e além do bem e do mal, com leis e códigos morais jogados de lado e todos os homens gritando, matando e festejando em júbilo. Então os Antigos libertos ensinariam a eles novos modos de gritar e matar e festejar e rejubilar-se, e toda a terra se incendiaria com um holocausto de êxtase e liberdade. Enquanto isso, o culto, por meio dos ritos apropriados, deveria manter viva a memória desses antigos modos, vigiando e transmitindo secretamente a profecia de seu retorno.

No tempo dos anciões, os homens escolhidos falaram com os Antigos sepultados em sonhos, mas algo então aconteceu. A grande cidade de pedra R’lyeh, com seus monólitos e sepulcros, afundou em meio às ondas; e as águas profundas, cheias do mistério primordial através do qual nem mesmo o pensamento pode perpassar, fizeram cortar as comunicações espectrais. Mas a memória nunca morreu, e os grandes sacerdotes diziam que a cidade se ergueria novamente quando as estrelas estivessem alinhadas. Então saíram da terra os espíritos negros, sombrios e decadentes, e cheios de boatos obtusos esconderam-se em cavernas no esquecido fundo-do-mar. Mas, deles, o velho Castro não ousava falar muito. Ele se calou rapidamente, e nenhuma persuasão ou sutileza pôde extrair mais sobre o assunto. O tamanho dos Antigos, também, ele curiosamente se recusou a mencionar. Do culto, ele disse que achava que o centro estivesse próximo ao incognoscível deserto da Arábia, onde Irem, a Cidade de Pilares, sonha oculta e intocada. Ele não estava alinhado com o culto às bruxas europeu, e era praticamente desconhecido entre seus membros. Nenhum livro aludiu realmente a ele, contudo os chineses imortais disseram que havia duplos sentidos no Necronomicon³* do árabe louco Abdul Alhazred, os quais o iniciado poderia ler como eles apontaram, particularmente o muito-discutido dístico:


“Não está morto o que pode eternamente jazer e após eras estranhas, até mesmo a morte pode morrer”


Legrasse, profundamente impressionado e nem um pouco desnorteado, inquiriu em vão a respeito das afiliações históricas do culto. Castro, aparentemente, tinha contado a verdade quando dissera que a coisa era hermeticamente secreta. As autoridades da Tulane University não puderam lançar luz sobre o culto ou a imagem, e agora o detetive apelava às mais eminentes autoridades no país e se deparava com nada menos que a história da Groenlândia do professor Webb.

O interesse febril despertado à defrontação com a história de Legrasse, corroborado que foi pela estatueta, encontrou eco na subsequente corres- pondência daqueles que assistiram; embora sejam escassas as menções nas publicações formais da sociedade. Precaução é o primeiro cuidado daqueles acostumados a enfrentar ocasionais charlatanices e fraudes. Legrasse, durante algum tempo, emprestou a imagem ao professor Webb, mas à morte do último ela fora devolvida a ele e permanece em sua posse, onde eu a vi não faz muito tempo. É verdadeiramente uma coisa terrível, e inequivocamente semelhante à escultura onírica do jovem Wilcox.

³* Livro místico e imaginário. Neste grimório desconhecido estariam guardados segredos sobre o universo e práticas mágicas que trariam novamente a este planeta os Grandes Antigos. (N. do T.)

Que meu tio tivesse se excitado com a histórica do escultor eu não me admirei, pois que ideias poderiam sobrevir, depois de tomar conhecimento do que Legrasse tinha aprendido sobre o culto, ao ouvir um jovem sensitivo que houvera sonhado não só com a figura e os hieróglifos exatos da imagem encontrada no pântano e a tábua diabólica da Groenlândia, mas entrou em seus sonhos a partir de ao menos três das palavras exatas da fórmula pronunciadas de modo similar por esquimós satanistas e mestiços da Louisiana? O início imediato de uma investigação sobre o limite da perfeição empreendida pelo professor Angell era certamente natural; embora reservadamente eu suspeitasse que o jovem Wilcox tivesse ouvido falar do culto de modo indireto, e tivesse inventado uma série de sonhos para exaltar e conservar o mistério às custas de meu tio. As narrativas oníricas e recortes colecionados pelo professor eram logicamente, uma forte evidência; mas o racionalismo de minha mente e a extravagância de todo o tema me fizeram adotar o que eu entendi como as mais sensatas conclusões. Assim, depois de estudar o manuscrito inteiramente mais uma vez e correlacionando as notas teosóficas e antropológicas com a narrativa do culto de Legrasse, eu fiz uma viagem a Providence com o objetivo de ver o escultor e lhe repreender o quanto achei necessário por tamanho atrevimento diante de um homem culto e idoso.

Wilcox vivia só no edifício Fleur-de-Lys na Thomas Street; uma horrenda imitação vitoriana da arquitetura bretã do século XVII, que ostenta seu frontão de taipa em meio às amáveis casas coloniais na colina antiga, e debaixo da mesma sombra que o mais belo campanário georgiano na América, eu o achei em seu quarto, e imediatamente me convenci, pelos espécimes espalhados, de que sua genialidade é realmente profunda e autêntica. Cedo ou tarde, penso, ele será lembrado como um dos grandes decadentes; pois cristalizou em argila e um dia o espelhará em mármore, os pesadelos e fantasias que Arthur Machen¹** evoca em prosa, e Clark Ashton Smith²** torna visíveis em verso e em tinta. Soturno, frágil, e de aspecto um pouco desleixado, ele virou-se languidamente à minha batida e me perguntou qual era o meu negócio sem se exaltar. Então eu lhe falei quem eu era, ele mostrou algum interesse; pois meu tio instigou sua curiosidade em investigar os tais estranhos sonhos, ainda que nunca houvesse explicado a razão do estudo. Neste particular, eu não expandi seu conhecimento, mas busquei com alguma sutileza tirá-lo da jogada. Em pouco tempo eu fiquei convencido de sua sinceridade absoluta, porque ele falou dos sonhos de um modo que jamais alguém poderia. Eles e os seus resíduos subconscientes tinham influenciado a arte dele profundamente, e ele me mostrou uma estátua mórbida cujos contornos quase me fizeram estremecer com a potência de sua maléfica vibração. Ele não pôde recordar se havia visto o original dessa coisa, exceto em seu próprio baixo-relevo onírico, mas os esboços tomaram forma insensivelmente em suas mãos. Era, sem dúvida, a forma gigante com a qual ele havia delirado. Que ele realmente não sabia nada do culto secreto, salvo sobre o que o catecismo inexorável de meu tio tinha deixado pistas, ele logo tornou claro; e novamente eu me esforcei para pensar em algum modo no qual ele poderia ter recebido as misteriosas impressões.

¹** Machen, Arthur (1863-1947), escritor inglês de renome que abordava temas sobrenaturais, admirado por Lovecraft. (N. do T.)

²** Smith, Clark Ashton (1893-1961), escritor e artista plástico que além de amigo de Lovecraft era admirado por ele. (N. do T.)

Ele falou de seus sonhos de uma maneira curiosamente poética; fazendo-me ver com terrível vivacidade o desalento da cidade ciclópica de pedra verde e musgosa, sobre cuja geometria, ele estranhamente falou, estava toda errada, e ouvir com temeroso receio o insistente e quase mental chamado dos subterrâneos: “Cthulhu, fhtagn”, “Cthulhu, fhtagn”. Essas palavras formavam parte daquele ritual assustador que falava da vigília onírica do Cthulhu adormecido em sua cripta de pedra em R’lyeh, e eu me senti profundamente tocado, apesar de minhas convicções racionais. Wilcox, eu tenho certeza, havia ouvido falar do culto de modo casual, e tinha então esquecido-o rapidamente em meio à massa de leituras e pensamentos igualmente esquisitos. Depois, puramente em virtude de sua impressionabilidade, as lembranças acharam expressão subconsciente em sonhos, no baixo-relevo, e na estátua terrível que eu agora observava; de forma que sua impostura sobre meu tio tinha sido muito inocente. O jovem era de um tipo, ligeiramente afetado e ligeiramente rude ao mesmo tempo, o qual eu nunca poderia gostar, mas eu estava agora inclinado o suficiente a admitir seu gênio e sua honestidade. Eu me despedi amigavelmente, e lhe desejei todo o sucesso que o seu talento prometia.

O assunto do culto ainda continuou a me fascinar, e às vezes eu tinha visões de sucesso e fama pessoal pelas pesquisas sobre sua origem e conexões. Eu visitei New Orleans, conversei com Legrasse e outros daquele grupo antigo da batida, vi a imagem medonha, e até mesmo questionei alguns dos mestiços prisioneiros ainda vivos. O velho Castro, infelizmente, morrera há alguns anos. O que eu ouvi agora tão graficamente em primeira mão, embora realmente não fosse mais que uma confirmação detalhada do que meu tio escrevera, me excitou mais uma vez; porque eu tinha certeza de que eu estava no rasto de uma muito real, secreta, e antiga religião cuja descoberta me faria um antropólogo ilustre. Minha atitude seguia sendo de materialismo absoluto, como eu desejava que fosse ainda hoje, e eu desconsiderei com perversidade quase inexplicável a coincidência das notas oníricas e estranhos recortes coletados pelo professor Angell.

Uma coisa que eu comecei a suspeitar, e que agora eu temo saber, é que a morte de meu tio estava longe de ter sido natural. Ele caiu em uma rua de colina estreita que conduzia a uma antiga zona portuária enxameada por mestiços estrangeiros, depois de um empurrão descuidado de um marinheiro negro. Eu jamais esqueci o sangue misturado e a ligação marítima dos membros do culto na Louisiana, e não iria me surpreender em aprender sobre métodos secretos de ritos e crenças. Legrasse e os seus homens, é verdade, foram deixados sós; mas na Noruega um certo lobo do mar que via coisas está morto. Poderiam as investigações mais aprofundadas de meu tio depois de encontrar os dados do escultor ter chegado a ouvidos sinistros? Acho que o professor Angell morreu porque sabia demais, ou porque era provável que ele tivesse aprendido muito. Se eu partirei como ele, isso ainda não está claro, porque eu também sei bastante.



III. A LOUCURA VINDA DO MAR


Se o céu alguma vez já desejou conceder-me uma dádiva, seria a destruição total dos resultados de um mero relancear que fixou meu olho em certa folha de papel que forrava uma prateleira da estante. Não era algo a que eu naturalmente teria me prendido no curso de minha rotina diária, porque era um velho número de um periódico australiano, o Sydney Bulletin, de 18 de abril de 1925. Ele tinha escapado até mesmo à seção de recortes que, à época de sua publicação, coletava avidamente material para a pesquisa de meu tio.

Eu já havia cessado minhas investigações acerca do que o professor Angell denominou de “Culto a Cthulhu”, e estava visitando um amigo instruído em Paterson, New Jersey; o curador de um museu local e um mineralogista notável. Certo dia, examinando os espécimes armazenados rudemente dispostos nas estantes do depósito em uma sala nos fundos do museu, meus olhos se detiveram sobre uma estranha gravura em um dos velhos documentos espalhados em baixo das pedras. Era o Sydney Bulletin que eu há pouco mencionei, pois meu amigo tinha vastos contatos por todo o estrangeiro; e a gravura era um recorte em meio- tom da imagem de uma pedra horrenda quase idêntica àquela que Legrasse havia achado no pântano. Limpei ansiosamente a área de seus preciosos conteúdos, esquadrinhei minuciosamente a folha e fiquei desapontado ao achar seu tamanho apenas moderado. O que sugeria a peça, no entanto, era de extrema relevância para minha busca pessoal; e eu cuidadosamente rasguei a folha para uma ação imediata. Lia-se o seguinte:


ENCONTRADO MISTERIOSO NAVIO À DERIVA

Vigilant chega com iate neozelândes armado e avariado. Um sobrevivente e um morto foram encontrados a bordo. Uma história de uma batalha desesperada

e mortes em alto-mar. Lobo do Mar resgatado se recusa a narrar a estranha experiência. Ídolo singular achado em seu poder. Inquérito será aberto.


O cargueiro Vigilant, da Morrison Co., com destino a Valparaíso, chegou nessa manhã a sua doca, no porto de Darling, levando a reboque o combalido e desativado, mas pesadamente armado iate a vapor Alert, de Dunedin, N.Z., que fora avistado em 12 de abril à latitude S.34°21’, longitude W.152°17’, com um homem vivo e um morto a bordo.

O Vigilant deixou Valparaíso no dia 25 de março, e em 2 de abril foi obrigado a mudar consideravelmente seu curso por conta das tempestades excepcionalmente intensas e ondas monstruosas. Em 12 de abril o navio abandonado foi avistado; e embora parecesse deserto, descobriu-se, depois de abordado, que continha um sobrevivente em condição semidelirante e um homem que evidentemente estivera morto havia mais de uma semana. O vivo agarrava-se a um horrível ídolo de pedra de origem desconhecida, de cerca de um pé de altura, cuja natureza as autoridades da Sydney University, da Royal Society, e do Museu de College Street professaram completo estarrecimento, e que o sobrevivente disse ter encontrado na cabine do iate, em um pequeno relicário entalhado em padrões comuns.

Depois de recuperar os sentidos esse homem contou uma história sumamente estranha de pirataria e carnificina. Ele é Gustaf Johansen, um norueguês de inteligência mediana que fora o segundo imediato da escuna de dois mastros Emma de Auckland que velejava para Callao desde 20 de fevereiro com uma tripulação de onze homens. A Emma, ele disse, estava atrasada e fora arremetida largamente para o sul de seu curso pela grande tempestade de 1º de março, e em 22 de março, na latitude S.49°51’ longitude W. 128°34’, encontrou o Alert, manejado por uma suspeita e malfazeja tripulação de canacas e mestiços. Ordenado peremptoriamente a recuar, o capitão Collins recusou-se a obedecer; ao que a estranha tripulação começou a atirar selvagem e inadvertidamente na escuna com uma bateria de canhão de bronze peculiarmente pesada que fazia parte do equipamento do iate. Os homens da Emma não se desviaram da luta, diz o sobrevivente, e, embora a escuna começasse a afundar por causa dos tiros abaixo da linha-d’água, eles trataram de suspendê-la lado a lado com o inimigo e abordá-lo, lutando corpo a corpo com a tripulação selvagem no convés do iate, e foram forçados a matá-los, sendo o número ligeiramente superior, por causa de seu particularmente abominável e desesperado canhestro modo de lutar.

Três homens da Emma, incluindo aí o capitão Collins e o primeiro imediato Green, foram mortos; e os oito remanescentes, sob o comando do segundo imediato Johansen, tomaram o leme do iate capturado e continuaram em seu curso original, para ver se havia alguma razão em tê-los ordenado recuar. No dia seguinte, ao que tudo indica, eles ancoraram e desembarcaram em uma pequena ilha, embora não se conheça alguma ilha naquela parte do oceano; seis dos homens de algum modo morreram em terra firme. Johansen se mantém estranhamente reticente sobre esta parte de sua história e fala apenas que seus companheiros caíram em uma fenda na rocha sólida. Em seguida, ao que parece, ele e um companheiro subiram a bordo do iate e tentaram manobrá-lo, mas foram vencidos pela tempestade de 2 de abril. Dali até o seu resgate, no dia 12, o homem se lembra de pouca coisa, e nem mesmo recorda quando William Briden, seu companheiro, morreu. A morte de Briden não revela causa aparente, e provavelmente se deveu à tensão ou à desproteção. Mensagens telegrafadas de Dunedin relatam que o Alert era bem conhecido lá como um barco mercante de ilhas, e sustentava uma péssima reputação frente à zona portuária. Ele fora adquirido por um excêntrico grupo de mestiços, cujas frequentes reuniões e viagens noturnas para os bosques atraíam grande curiosidade, e havia zarpado com bastante pressa logo após a tempestade e os tremores de terra de 1º de Março. Nosso correspondente de Auckland atribui a Emma e à sua tripulação uma excelente reputação, Johansen é descrito como um homem sóbrio e digno. O almirantado pretende abrir um inquérito sobre todo o caso a partir de amanhã, quando todos os esforços serão despendidos para induzir Johansen a falar mais livremente do que o fez até o momento.

Isso era tudo, afora a gravura com a cena demoníaca, mas que remoinho de ideias despertou em minha mente! Aqui estavam novos e preciosos dados sobre o Culto a Cthulhu, e evidências de que ele tinha estranhos interesses no mar tanto quanto em terra. Que motivação teria levado a híbrida tripulação a ordenar que a Emma recuasse enquanto eles velejavam carregando seu horrendo ídolo? Qual era ilha desconhecida onde seis dos tripulantes da Emma teriam morrido, e sobre a qual o imediato Johansen se mantinha tão reservado? O que teria a investigação do vice-almirantado trazido à tona? O que se conhecia a respeito do maléfico ritual em Dunedin? E o mais fantástico de tudo, que encadeamento profundo e sobrenatural era esse, que dera um maligno e agora inegável significado para aquela sequência de eventos tão cuidadosamente registrada por meu tio?

No dia 1º de março, ou 28 de fevereiro, se considerarmos a Linha Internacional de Mudança de Data, vieram o terremoto e a tempestade. De Dunedin, o Alert e sua asquerosa tripulação se arremessaram impetuosamente ao mar como se houvessem recebido uma intimação imperiosa, e do outro lado do planeta, poetas e artistas começaram a sonhar com uma estranha e úmida cidade ciclópica, ao passo que um jovem escultor moldava durante o sono a forma do pavoroso Cthulhu. Em 23 de março, a tripulação da Emma atracou em uma ilha desconhecida e deixou seis homens mortos; na mesma data em que os sonhos dos homens sensitivos assumiam uma impressionante vivacidade e também obscurecia com o pavor da busca maligna a um monstro gigante, ao passo que um arquiteto enlouquecera e um escultor subitamente deixou-se cair em delírio! E quanto à tempestade de 2 de abril, a data em que todos os sonhos com a úmida cidade cessaram, e Wilcox emergiu incólume do cativeiro de uma estranha febre? E quanto a tudo isso, e aos palpites do velho Castro sobre os Antigos submersos, nascidos-das-estrelas, e seu reinado próximo; seu culto fiel e seu domínio sobre os sonhos? Estava eu pisando em falso na beira de um abismo de horrores cósmicos que qualquer ser humano jamais suportaria? Se estava, eles deveriam ser os horrores da mente solitária, pois de algum modo, o dia dois de abril pôs fim a toda ameaça monstruosa que estivesse tentando aprisionar a alma da humanidade.

Naquela noite, depois de um longo dia de apressados preparativos e tensas comunicações, eu disse adeus aos meus anfitriões e peguei um trem para San Francisco. Em menos de um mês eu estava em Dunedin; onde, porém, eu descobri que pouco se sabia acerca dos estranhos membros do culto que rondavam as velhas tabernas do porto. A escória das docas era ordinária demais para chamar a atenção; contudo havia uma vaga menção a certa viagem ao interior do país que aqueles mestiços teriam feito, durante a qual um tamborilar abafado e uma chama bem vermelha foram notados no alto de umas colinas distantes. Em Auckland, eu descobri que Johansen saíra de cabelo branco, ao invés do loiro natural, após um interrogatório superficial e inconclusivo em Sydney, e depois disso teria vendido sua cabana em West Street e velejado, junto com a mulher, para seu antigo lar, em Oslo. De sua traumatizante experiência, ele contaria aos amigos não mais do que confessou aos oficiais do almirantado, e tudo o que eles puderam fazer por mim foi dar-me o seu endereço em Oslo.

Em seguida, fui até Sydney e tentei em vão extrair informação dos marujos e membros da corte do vice-almirantado. Vi o Alert, agora vendido e em uso comercial, no cais circular na Baía de Sydney, mas nada ganhei com sua majestosa indiferença. A figura agachada com sua cabeça de siba, corpo de dragão, asas escamosas, e pedestal repleto de hieróglifos estava preservada no Museu do Parque Hyde; eu a estudei longa e detidamente, achando-a uma obra funesta de um artesão excêntrico, mas que possuía o mesmo mistério absoluto, o mesmo ar de uma terrível antiguidade, e a mesma sobrenatural estranheza de material que eu havia notado no espécime menor de Legrasse. Geólogos, o curador me contou, a tinham considerado um monstruoso quebra-cabeça; pois juravam que não havia no mundo uma rocha como aquela. Então eu pensei, com certo estremecimento, no que o velho Castro contara a Legrasse a respeito dos Antigos; “Eles vieram das estrelas, e trouxeram as Suas imagens”.

Abalado com uma revolução mental como eu nunca sentira outrora, estava agora decidido a visitar o imediato Johansen em Oslo. Velejando para Londres, tornei a embarcar imediatamente para a capital norueguesa; e desembarquei num dia outonal em um cais à sombra de Egeberg¹ . O endereço de Johansen, eu descobri, ficava na velha cidade do rei Harold Haardrada, que mantivera vivo o nome de Oslo durante todos os séculos em que a maior cidade mascarou-se como “Christiania”². Fiz a curta viagem de táxi, e, com o coração palpitante, bati à porta de um edifício elegante e antigo com a fachada de argamassa. Uma mulher de rosto entristecido, vestida de preto, respondeu a meu apelo, e eu fui tocado pelo desapontamento quando a ouvi dizer, em um inglês deficiente, que Gustaf Johansen não estava mais entre nós.

Ele não sobreviveu muito tempo após retornar, disse sua esposa, pois as desventuras no mar, em 1925, o exauriram. Ele havia contado a ela não mais do que contara ao público, mas havia deixado um longo manuscrito, acerca de “assuntos técnicos” como ele mesmo dissera, escrito em inglês, evidentemente para protegê-la do perigo de uma leitura casual. Durante um cansativo passeio até uma ruela próxima à doca de Gotemburgo, uma fardo de papel, caindo da janela de um sótão, o acertou em cheio. Dois marinheiros indianos imediatamente o ajudaram e puseram-no de pé, mas estava morto, antes que a ambulância pudesse socorre-lô. Os médicos não conseguiram descobrir qual a verdadeira causa da morte, e a creditaram a um problema do coração e a uma fraca constituição.

¹ Egeberg é um castelo da Noruega. (N. do T.)

² Oslo é a capital e maior cidade da Noruega. Localiza-se no sudeste do país e detém estatuto de comuna e condado simultaneamente. Fundada em 1048 pelo rei Harald III Hardråde da Noruega, a cidade foi imensamente destruída por um incêndio em 1624. O rei dano-norueguês Christian IV reconstruiu a cidade com o nome de Cristiânia, o qual possuiu entre 1624 e 1924. Em 1952 a cidade foi a sede dos Jogos Olímpicos de Inverno. É a cidade onde é entregue o Prémio Nobel da Paz. Em 2006 Oslo foi eleita pela BBC como a cidade mais cara do mundo.1 A capital foi eleita a cidade com a 24.ª melhor qualidade de vida do mundo. Oslo é o centro cultural, científico, econômico e governamental da Noruega. Tem sua atenção voltada para negociações, bancos, indústrias e navegação. E muitas empresas voltadas para o setor marítimo estão presentes nessa capital. (N. do T.)

Eu agora sentia minhas entranhas se corroerem com aquele terror sombrio que não me abandonaria até que, eu também, repousasse em paz; “acidentalmente” ou ao contrário. Tendo persuadido a viúva de que minha conexão com os tais “assuntos técnicos” de seu marido era o suficiente para me dar algum direito sobre o manuscrito, levei o documento e comecei a ler no barco para Londres. Era algo simples e divagante, o esforço de um ingênuo marinheiro em escrever um diário post factum, e se empenhava em recordar, dia a dia, aquela última viagem maldita. Eu não tentaria transcrevê-lo textualmente em toda a sua redundância e nebulosidade, mas contarei em essência, o que dizia, para dar a conhecer o porquê do som da água contra a lateral do navio se tornar tão insuportável pra mim a ter que tapar meus ouvidos com algodão.

Johansen, graças a Deus, não soube verdadeiramente de tudo, embora tivesse visto a cidade e a Coisa, mas eu nunca mais poderei dormir tranquilo enquanto estiver pensando nos horrores que espreitam incessantemente atrás da vida no tempo e no espaço, e daquelas profanas blasfêmias de estrelas anciãs que sonham debaixo do oceano, sabidas e protegidas por um culto letárgico pronto e ansioso para liberá-las sobre o mundo assim que outro terremoto possa soerguer sua monstruosa cidade de pedra novamente ao sol e ao ar.

A viagem de Johansen começara exatamente como ele contou ao vice- almirantado. A Emma, em lastro, havia chegado a Auckland em 20 de fevereiro, e tinha sentido toda a força daquela tempestade sísmica que devia ter erguido do fundo-do-mar os horrores que ocupam os sonhos dos homens. Novamente sob controle, o barco estava avançando bem quando deparou com o Alert em 22 de março, e eu pude sentir toda a tristeza do imediato enquanto escrevia sobre o seu bombardeio e consequente naufrágio. Dos fanáticos mestiços do Alert ele fala com particular horror. Havia alguma qualidade peculiarmente abominável a respeito deles que fazia com que sua destruição parecesse quase um dever, e Johansen manifesta uma ingênua surpresa ao falar da acusação de impiedade levantada sobre os seus companheiros durante os procedimentos do inquérito judicial. Então, levados adiante pela curiosidade acerca do iate capturado sob o comando de Johansen, os homens avistam um grande pilar de pedra surgindo no mar, e na latitude S.47°9’, longitude W. 123°43’, sobrevinha um litoral que misturava lama, limo e alvenaria ciclópica coberta por algas, o qual era nada mais nada menos que a substância tangível do terror supremo da Terra, a enfadonha cidade-cadáver de R’lyeh, construída em eras remotas, há muito esquecidas pela história, formas repugnantes que se condensaram das estrelas mais sombrias. Lá jaziam o grande Cthulhu e suas hordas, ocultos entre as valas verdes e viscosas e, afinal, grassando, após ciclos incalculáveis, os pensamentos que espalhavam medo nos sonhos dos sensitivos e ordenavam imperiosamente aos fiéis que viessem em uma romaria de liberação e restauração. De tudo isso Johansen não suspeitava, mas Deus sabe que ele viu o bastante! Eu suponho que, na verdade, apenas o cume da montanha, a horrenda cidadela coroada pelo monólito em que o grande Cthulhu havia sido enterrado, emergira das águas. Quando pensei na extensão e no que poderia estar sendo gerado a partir dali, quase desejei que tivesse me suicidado sem demora. Johansen e seus homens se assombraram com a cósmica majestade da encharcada Babilônia de demônios anciões, e devem ter adivinhado, sem muito esforço, que aquilo não era desse ou de outro planeta são. O assombro com o inacreditável tamanho dos blocos de pedra esverdeados, a estonteante altura do grande monólito entalhado, e a estupefata semelhança das estátuas colossais e dos baixos-relevos com a esquisita imagem encontrada dentro do relicário no Alert é pungentemente visível em cada linha da descrição atemorizada do imediato.

Sem saber o que é futurismo, Johansen alcançou algo muito próximo a isso ao falar sobre a cidade; pois em vez de descrever qualquer estrutura definida ou edificação, ele ateve-se somente em vagas impressões de vastos ângulos, superfícies rochosas e muito grandes para pertencerem a algo próprio ou de alguma forma adequado a este planeta, e ímpias, com horríveis imagens e seus hieróglifos. Eu menciono sua descrição sobre ângulos porque lembra algo que Wilcox havia me contado quando falou de seus sonhos terríveis. Ele disse que a geometria do ambiente onírico que ele vira era anormal, não-Euclidiana, e repugnantemente repleta de esferas e dimensões distintas das nossas. Agora um iletrado lobo do mar sentia a mesma coisa que Wilcox, enquanto contemplava esta terrível realidade.

Johansen e seus homens desembarcaram em um banco de areia um pouco inclinado nessa monstruosa acrópole, e subiram às escorregadelas em blocos de lama titânicos que jamais poderiam ter sido construídos para servirem de degraus a mortais. O sol escaldante no céu parecia distorcido quando visto através dos miasmas polarizantes, emanando da perversão encharcada de mar, e um sentimento ao mesmo tempo de ameaça e expectativa escondia-se de soslaio naqueles ângulos loucamente elusivos de rocha esculpida onde um segundo relancear mostraria concavidade depois de o primeiro aparentar convexidade. Algo muito parecido com o pânico instalou-se nos exploradores antes que algo mais específico além de rocha, lama e alga pudesse ser visto. Todos teriam fugido se não temessem o escárnio dos outros, e foi apenas com indiferença que eles procuraram, em vão, como ficou provado por algum souvenir, que pudessem levar dali. Foi Rodrigues, o português, quem escalou até o sopé do monólito e gritou sobre o que tinha achado. Os demais o seguiram, e olharam, curiosos a imensa porta entalhada com o, agora familiar, baixo-relevo com a lula-dragão. Era, disse Johansen, como a enorme porta de um estábulo; e todos eles só acharam que aquilo era uma porta por causa do lintel tornado da soleira e dos umbrais ao redor, embora não fossem unânimes em responder se ela ficava deitada e achatada ou se estava inclinada como uma porta de acesso externo ao porão. Como Wilcox teria dito, a geometria do lugar estava toda errada. Não se podia ter certeza se o mar e o chão estavam na horizontal, portanto a posição relativa de todo o resto parecia fantasmagoricamente variável.

Briden empurrou a pedra em vários pontos diferentes, sem resultado. Donovan examinou delicadamente as bordas, pressionando cada ponto separadamente, conforme avançava. Ele escalou infinitamente a moldura grotesca de pedra, isso é, chamar-se-ia aquilo de escalar se a coisa não estivesse afinal deitada, e os homens se perguntaram como uma porta no universo podia ser tão grande. Então, muito suave e lentamente, o gigantesco lintel³ começou a ceder desde o topo; e eles viram que era algo articulado. Donovan deslizou ou de alguma maneira se impulsionou para baixo ou na direção do umbral e uniu-se novamente aos seus companheiros, e todos assistiram o estranho recuo do portal monstruosamente esculpido. Nesta fantasia de distorção prismática ele se movia irregularmente em um caminho diagonal, de forma que parecia contrariar todas as regras da física e da perspectiva.

A fresta era negra com uma escuridão quase material. Aquela tenebrosidade era, na verdade, uma qualidade positiva; porque ela obscurecia tais partes das muralhas internas que deveriam ter sido reveladas, e, com efeito, dispersadas como fumaça de seu cárcere perpétuo, visivelmente eclipsando o sol conforme se esquivava no céu retraído e corcunda em um agitar de asas membranosas. O odor que exalou das recém-abertas profundezas era intolerável, e enfim o ouvido apurado de Hawkins pensou ter escutado um sórdido e frouxo som lá de baixo. Todos ouviram, e todos estavam ouvindo atentos quando Ele desabou desajeitadamente e escorregou, lânguido, sua imensidão verde gelatinosa desde o negro portal até o lado de fora, no ar contaminado daquela venenosa e ensandecida cidade.

Os garranchos de Johansen quase se fizeram desistir quando ele escreveu sobre isso. Dos seis homens que nunca alcançaram o navio, ele acha que dois pereceram de puro susto naquele instante amaldiçoado. A Coisa não pode ser descrita, e não há palavras para tamanhos abismos de estridência e loucura imemorável, tamanhas contradições assombradas a respeito de toda matéria, força, e ordem cósmica. Uma montanha caminhou ou tropeçou. Deus! É de se admirar que, do outro lado da Terra, um grande arquiteto tenha enlouquecido e o pobre Wilcox delirado de febre naquele instante telepático? A Coisa dos ídolos, a verde, pegajosa prole das estrelas havia despertado para reivindicar seus direitos. As estrelas estavam alinhadas novamente, e o que um culto secular não foi capaz de fazer conscientemente, um bando de inocentes marinheiros havia feito sem querer. Depois de milhões de anos o grande Cthulhu estava novamente liberto, e ávido por deleitar-se.

³ No original, “lintel” (ingl. pelo fr. ant. lintel, do lat. limitale, relativo à porta de entrada): “verga de porta ou de janela”; em outra acepção: “apoio lateral de prateleiras”. A tradução optou pelo termo cognato em português. (N. do T.)

Três homens foram varridos pelas flácidas garras antes que alguém se desse conta. Deus os tenha em paz, se ainda houver paz no universo. Eram Donovan, Guerrera, e Angstrom. Parker caiu enquanto os outros três freneticamente se atiraram ao horizonte sem-fim de rocha limosa, em direção ao barco, e Johansen jura que foi tragado por um ângulo de alvenaria que não deveria estar lá; um ângulo que era agudo, mas se comportava como se fosse obtuso. Então apenas Briden e Johansen alcançaram o barco, e seguiram desesperadamente para o Alert, ao passo que a monstruosidade montanhosa se arrastava nas pedras cheias de lodo e hesitava, debatendo-se à margem da água.

O barco a vapor não se danificara tanto a ponto de afundar completamente, apesar da ida de todas as mãos para a costa; e foi apenas questão de instantes de empurrões febris para cima e para baixo entre o leme e os motores para ter o Alert em marcha. Lentamente, em meio aos horrores distorcidos daquela cena indescritível, ele começou a agitar as águas letais; enquanto que na alvenaria da costa sepulcral que não era da Terra, a titânica Coisa das estrelas babava e balbuciava como Polifemo¹* amaldiçoando o fugaz navio de Odisseu²*. Então, mais corajoso que o lendário ciclope, o grande Cthulhu deslizou, gordurento, na água e começou a persegui-los com fortes golpes de cósmica potência, capazes de erguer altas ondas. Briden olhou para trás e enlouqueceu, começando a rir histericamente e continuando a rir a certos intervalos de tempo até que a morte o achou uma noite na cabine em que Johansen devaneava delirante. Entretanto Johansen não se tinha entregado. Sabendo que a Coisa seguramente podia alcançar o Alert, até que o barco estivesse a pleno vapor, ele optou por uma ação desesperada; ajustando o motor para velocidade máxima, correu como um relâmpago até o convés e girou todo o leme. Fez-se um poderoso redemoinho e uma espuma na nauseante salmoura. E conforme a potência do vapor aumentava, o bravo norueguês apontou sua proa contra a criatura gelatinosa que o perseguia, que parecia se erguer sobre a escuma imunda como a popa de um galeão demoníaco. A medonha cabeça de lula com antenas retorcidas chegou muitíssimo próximo aos gurupés do resoluto iate, mas Johansen seguiu implacável. Houve um estouro de uma bexiga explodindo, uma sujeira lamacenta como de um enorme peixe estraçalhado, um fedor como de mil covas abertas, que cujo o som o cronista não poderia pôr no papel. Durante um momento o navio foi enevoado por uma ácida e cegante nuvem verde, e então havia apenas uma assertiva venenosa e fervilhante; onde — Deus do céu! — a plasticidade irradiada daquela inominável prole celeste estava nebulosamente se recombinando em sua odiosa forma original, enquanto a cada segundo a distância aumentava à medida que o Alert ganhava ímpeto com o vapor que subia.

¹* O ciclope que foi morto por Ulisses, na Odisséia, de Homero, na mitologia grega. (N. do T.)

²* Ulisses, nome latino de Odisseu, na mitologia grega, governador da ilha de Ítaca e um dos chefes do exército grego durante a guerra de Tróia. (N. do T.)

Isso era tudo. Depois daquilo, Johansen apenas meditou brevemente acerca do ídolo na cabine e cuidou de arranjar comida para si e para o risonho maníaco ao seu lado. Ele não tentou navegar depois do primeiro voo corajoso, pois que a reação havia tirado algo de sua alma. Então veio a tempestade de 2 de abril, e um ajuntamento de nuvens sobre sua consciência. Há uma sensação de estonteamento espectral nos líquidos golfos do infinito, de andanças vertiginosas em universos espiralados, montado em uma cauda de cometa, e de mergulhos histéricos do poço à Lua e da Lua de volta para o poço, tudo animado por um coro cachinador de deformados e hilariantes deuses anciões e diabretes verdes, de asas de morcego, zombeteiros, do Tártaro³*.

Fora daquele sonho, viria o resgate — Vigilant, o tribunal do vice- almirantado, as ruas de Dunedin, e a longa viagem de volta para a velha casa próxima a Egeberg. Ele não podia contar — eles achariam que estava louco. Ele escreveria tudo o que veio a saber antes da morte chegar, mas sua esposa não deveria supor. A morte seria uma dádiva se pudesse rasurar suas memórias.

Esse era o documento que eu li, e agora eu o pus na caixa de estanho ao lado do baixo-relevo e dos documentos do professor Angell. Com ele irá este meu registro — este teste de minha própria sanidade, em que reconstituo aquilo que eu espero nunca mais se reconstitua. Eu contemplei tudo o que o universo pode oferecer de horror, e mesmo os céus de primavera e as flores de verão talvez, depois de tudo, sejam veneno para mim. Mas eu não acho que minha vida será longa. Da mesma forma que meu tio se foi, que o pobre Johansen se foi, assim eu também irei. Eu sei muito, e o culto ainda vive.

³* Tártaro, na mitologia grega, a região mais baixa dos infernos. Segundo Hesíodo e Virgílio, ele é fechado por portas de ferro. (N. do T.)

Cthulhu também ainda vive, eu suponho, novamente encerrado naquele precipício de pedra que o escudou desde que o sol era jovem. Sua cidade amaldiçoada está mais uma vez submersa, pois o Vigilant velejou até o lugar depois da tempestade de abril; mas seus agentes na Terra ainda urram, cabriolam e fazem sacrifícios ao redor de monólitos com ídolos coroados em locais ermos. Ele deve ter sido apanhado pelo naufrágio enquanto ainda em seu abismo negro, ou de outra forma o mundo, a essa altura, estaria gritando de medo e frenesi. Quem conhece o fim? O que emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir. O asco aguarda e sonha nas profundezas, e a decadência se espalha sobre as oscilantes cidades dos homens. Um dia ela virá, mas eu não devo e não posso pensar! Deixe-me rezar para que, se eu não sobreviver ao fim deste manuscrito, meus executores testamentários ponham a cautela antes da audácia e cuidem para que ele não caia sob outro olhar.

Autor: H.P Lovecraft
Tradução: Viktor Chagas

Fantástico ein? Você pode ver também a adaptação para filme. Maravilhosa a coisa né? Cheio de detalhes, narrativa incrível, e essa tradução então? Várias notas explicativas, muito bom! Vocês podem conferir mais contos do autor bem feitas desse jeito aí no livro O Mundo Fantástico de H.P. Lovecraft que pode ser obtido no site da editora clock tower.

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4 Comentários

  1. Caraca, li o conto inteiro! Texto longo, hein!
    Legal, mais uma vez é explícito o racismo do autor.
    Só não curti a mentalidade do Cthulhu, que depois de uma eternidade adormecido e se comunicando por sonhos com as pessoas, se ergue e sai perseguindo um naviozinho que dá meia volta e atravessa por dentro da barriga dele.... porra Cthulhu, sério...

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  2. É porque ele não despertou, é preciso ter o alinhamento correto das estrelas. Ao meu ver os caras chegaram perto demais de R'lyeh e rolou algum tipo de projeção, como não é algo que pode ser compreendido pelos sentidos humanos aconteceu algum tipo de distorção da realidade. Se aquilo fosse mesmo o despertar de Cthulhu não sobraria o documento do falecido Francis (Que Deus o tenha).

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  3. Ah, provavelmente eu entendi errado então, não conheço as interpretações desse conto.
    Eu li o conto como sendo o despertar real de Cthulhu porque ali no parágrafo em que a criatura aparece está escrito:
    "A Coisa dos ídolos, a verde, pegajosa prole das estrelas havia despertado para reivindicar seus direitos. As estrelas estavam alinhadas novamente, e o que um culto secular não foi capaz de fazer conscientemente, um bando de inocentes marinheiros havia feito sem querer. Depois de milhões de anos o grande Cthulhu estava novamente liberto, e ávido por deleitar-se".
    Na minha interpretação simplória, o alinhamento das estrelas fez a cidade de R'lyeh emergir novamente, provocando um terremoto e causando sonhos em algumas pessoas, esses sonhos que seriam "O chamado de Cthulhu".

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  4. Sim, o chamado de Cthulhu são os sonhos, mas como o caos reinará na terra quando ele despertar, não tem como esse ter sido o despertar real. O que vejo é que realmente tenha sido apenas um vislumbre da coisa, uma distorção, mas sem o alinhamento correto de estrelas o negócio só foi temporário. Quase todos os contos de Lovecraft são algo no presente e que deixa aquele climinha de "A coisa tá lá fora e a qualquer momento o bagulho pode ficar louco ein?" no caso desse aí é como se fosse um documento, muitos deles são diários ou o próprio personagem contando pra si mesmo a história, essas coisas...

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