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Um habitante de Carcosa - Um conto que inspirou muitos!

A primeira vez que ouvi falar de Carcosa de forma marcante, foi no seriado True Detective, no entanto assim que essa palavra foi usada na série, eu tive a impressão de conhecer de algum lugar e ao dar uma pesquisada, descobri o quanto era coincidência essa palavra me chamar atenção exatamente em uma época bastante Lovecraftiana da minha vida, e que provavelmente eu já a devo ter ouvido várias vezes em diversas obras, mas apenas não tinha notado ainda, então resolvi falar um pouco sobre.

Como todos sabem, autores costumam ter a sua fonte de inspiração, por mais famosos que sejam e por mais que tenham o seu toque especial que os torna único, é bem normal ver autores falando de forma assumida que se inspiraram em outros. Alguns podem levar esse papo mais como cópia descarada, porém se for parar para pensar, há séculos que todas as ideias já foram usadas, então o que resta é se pegar elementos já vistos e misturar para gerar fórmulas novas, além de tudo o fato de uma pessoa inventar algo não a torna a melhor no assunto, o melhor lugar para se ver isso é o cinema, onde existem toneladas de filmes que são apenas cópias de outros, mas existem aqueles que conseguem pegar os elementos já apresentados e uni-los para tornar algo com cara de novo e único, mas que se você for pesquisar, vai achar algo semelhante aqui e ali...


Mas bom, estou falando isso porque é exatamente o que aconteceu com Carcosa, uma cidade fictícia inventada pelo jornalista e escritor de terror Ambrose Bierce. A cidade apareceu pela primeira vez em seu conto de 1886 chamado "An Inhabitant of Carcosa", publicado em 25 de dezembro daquele ano no jornal San Francisco Newsletter. No entanto a cidade não se limitou a esse conto, e em 1895 o escritor também americano Robert W. Chambers lançou um livro chamado "O Rei de Amarelo" que apresentava uma coletânea de contos envolvendo mistério e terror, a surpresa foi que ele pegou emprestado a cidade de Carcosa e outros trabalhos de Ambrose Bierce para aparecer ocasionalmente nas histórias.

E por fim veio H.P. Lovecraft, que no início de 1927 leu "O rei amarelo" e ficou impressionado, se tornando assumidamente fã de Robert W. Chambers e tendo uma forte influência do mesmo em seus trabalhos, pegando inclusive certos detalhes emprestados. E entre esses elementos que o mesmo pegou emprestado estava a cidade de Carcosa, que se tornou um dos elementos dos Mitos de Cthulhu e que é um lugar complexo, gerando discussões sobre onde fica, o que é e mesmo se fica em nosso planeta ou em nosso universo.

O conto fala sobre um homem que vaga perdido por um lugar, a narrativa é interessante pra caramba, e mesmo que o conto não impressione tanto para o público de hoje em dia, é notável que é uma história bastante impressionante para seu tempo. Acredito que esse conto tenha carregado algo semelhante ao que comentei na matéria sobre a complexidade de Matrix na época de foi lançado, ou seja uma obra que ao mesmo tempo que atinge o povão por ser muito interessante, tem uma profundidade enorme e pode gerar muitas discussões. É visível que a ideia apresentada no conto já foi reutilizada ao extremo desde aquela época até os dias de hoje, mas isso apenas valoriza mais o seu conteúdo. Naturalmente a cidade passou a aparecer em vários outros lugares da cultura pop, como Game of Thrones. Enfim confiram:



Um habitante de Carcosa

Meditando estas palavras de Hali (que Deus lhe conceda a paz eterna), e me pergunto qual seria o seu sentido pleno, como aquele que possui certos indícios, mas duvida se terá algo mais diferenciado, não prestei atenção ao lugar onde eu havia me perdido, até que senti no roto um vento gelado que reviveu em mim a consciência do lugar onde eu estava. Observei com assombro que tudo parecia estranho. Ao meu redor se estendia uma desolada e árida planície, coberta de ervas altas e murchas que se agitavam e sibilavam sob a brisa de outono, portadoras de Deus sabe que mistérios e inquietudes. A largos intervalos, se erguiam algumas rochas de formas estranhas e cores sombrias que pareciam ter mútuo entendimento e variações significativas de olhares, como se tivessem virando a cabeça para observar a realização de um acontecimento previsto. Algumas árvores secas aqui e lá pareciam ser os chefes dessa maléfica conspiração d expectativa silenciosa.

Apesar da ausência do sol, me pareceu que o dia devia estar muito avançado, e ainda que eu tenha me dado conta de que o ar era frio e úmido, minha consciência de fato era mais mental que física; não experimentava nenhuma sensação de incômodo. Por cima da fúnebre paisagem pairava um amontoado de nuvens baixas e pesadas, suspendidas como uma maldição visível. Em tudo havia uma ameaça e um presságio, um flash de maldade, um indício de fatalidade. Não havia nenhum pássaro, nenhum animal, nenhum inseto. O vento suspirava em galhos secos de árvores mortas, e a erva cinza se curvava para sussurrar à terra segredos espantosos. Mas nenhum outro ruído, nenhum outro movimento rompia a calma terrível daquele maligno lugar.

Observei na erva um certo número de pedras desgastadas pelo tempo e evidentemente trabalhadas com ferramentas. Estavam quebradas, cobertas de musgo, e meio cobertas pela terra. Algumas estavam caídas, outras se inclinavam em ângulos diversos, mas nenhuma estava vertical. Sem dúvida alguma eram lápides funerárias, ainda que as tumbas propriamente ditas não existam já em forma de túmulos nem depressões no solo. Os anos haviam nivelado tudo. Espalhados por toda parte, os grandes bosques marcavam o lugar onde algum  túmulo pomposo ou ambicioso havia lançado o seu frágil desafio ao esquecimento. Estas reliquias, estes vestígios de vaidade humana, estes monumentos de piedade e afeto me pareciam tão antigos, tão deteriorados, tão desgastados, tão manchados, e o lugar tão descuidado e abandonado, que não podia crer que era o descobridor do cemitério de uma raça pré-histórica de homens cujo nome se havia esquecido faziam muitos séculos.

Perdido nestas reflexões, permaneci um tempo sem prestar atenção ao encadeamento de minhas próprias experiências, mas depois de um tempo pensei: "Como cheguei aqui?". Um momento de reflexão deixou tudo caro e explicado ao mesmo tempo, ainda que de forma inquietante, o extraordinário caráter com que minha imaginação havia revertido tudo quanto via e ouvia. Estava doente. Lembrava agora que um ataque de febre repentina me tinha colocado de cama, que minha família me tinha contado como, em minha crise de delírio, eu tinha pedido por ar e liberdade, e como me tinham mantido a força na cama para impedir que fugisse. Driblei a vigilância daqueles que cuidavam de mim, e vaguei até aqui para ir... Onde? Não tenho ideia. Sem dúvida me encontrava a uma distância considerável da cidade onde vivia, a antiga e célebre cidade de Carcosa.

Em nenhuma parte se ouvia nem se via sinal algum de vida humana. Não se via nenhuma fumaça subindo, nem se escutava o latido de nenhum cachorro guardião, nem o mugido de nenhum gado, nem gritos de crianças brincando; nada mais que esse cemitério lúgubre, com sua atmosfera de mistério e de terror devida ao meu cérebro transtornado. Não estaria por acaso delirando novamente, aqui, longe de todo o auxilio humano? Não seria tudo isso uma ilusão gerado por minha loucura? Chamei os nomes de minhas esposas e filhos, estendi as minhas mãos em busca das suas, inclusive caminhei entre as pedras trincadas e a grama murcha.

Um ruído atrás de mim me fez virar o olhar. Um animal selvagem - um lince - se aproximava. Me veio um pensamento: "Se caio aqui, no deserto, se a febre voltar e eu desmaiar, essa besta irá destroçar a minha garganta." Saltei em direção a ele, gritando. Passou a um palmo de mim, andando tranquilamente, e desapareceu por trás de uma rocha.

Um instante depois, a cabeça de um homem pareceu brotar da terra um pouco mais adiante. Ele estava subindo uma inclinação que ficava de frente a uma inclinação menor, cujo o topo apenas se distinguia da planície. Imediatamente vi toda a sua silhueta recortada sobre o fundo de nuvens cinzas. Estava meio nu, meio vestido com peles de animais; tinha os cabelos desarrumados e uma larga e esfarrapada barba. Em uma mão levava um arco e flecha; na outra, uma tocha flamejante com um largo rastro de fumaça. Caminhava lentamente e com precaução, como se temesse cair em um túmulo aberto, escondido pela vegetação. Esta estranha aparição me surpreendeu, mas não me deixou alarmado. Me dirigi até ele para interceptá-lo até que o tive em minha frente; o abordei com a familiar saudação:

-Que deus te guarde!

Ele não prestou a menor atenção, nem diminuiu o ritmo.

-Bom estrangeiro - prossegui - estou doente e perdido. Te rogo que me indique o caminho para Carcosa.

O homem começou um bárbaro canto em uma língua desconhecida, seguiu caminhando e desapareceu.

Sobre o galho de uma árvore seca uma coruja lançou um sinistro piado e outra lhe respondeu distante. Ao levantar os olhos vi através de uma brusca fresta nas nuvens a grande estrela de Aldebarã no aglomerado de estrelas das Híades. Tudo sugeria a noite: o lince, o homem levando a tocha, a coruja. E, sem dúvidas, eu via... via inclusive as estrelas mesmo na ausência da escuridão. Via, mas evidentemente não podia ser visto nem escutado. Que espantoso sortilégio dominava minha existência?

Me sentei ao pé de uma grande árvore para refletir seriamente sobre o que mais deveria fazer. Que eu estava louco, eu não tinha dúvidas, mas ainda assim tinha certo receio dessa convicção toda. Eu já não tinha mais sintoma alguma de febre. Mas ainda, experimentava uma sensação de alegria e força que me eram totalmente desconhecidas, uma espécie de exaltação física e mental. Todos os meus sentidos estavam alertas: o ar me parecia uma substância pesada, e podia ouvir o silêncio.

A grossa raiz da árvore gigante (contra a qual eu me apoiava) abraçava e oprimia uma laje de pedra que emergia parcialmente pelo vazio que deixava outra raiz. Assim, a pedra se encontrava parcialmente protegida dos desgastes do tempo, ainda que muito deteriorada. Suas bordas estavam desgastadas; seus cantos estavam roídos; sua superfície, completamente descascada . Na terra brilhavam partículas do mineral mica, vestígios de sua desintegração. Sem dúvidas, esta pedra apontava uma sepultura da qual a árvore havia brotado vários séculos antes. As raízes famintas tinham saqueado a tumba e aprisionado sua lápide.

Um brusco sopro de vento varreu as folhas secas e galhos acumulados sobre a lápide. Distingui então as letras do baixo relevo de sua inscrição, e me inclinei para ler. Deus do céu! Meu próprio nome... ! A data de meu nascimento! E a data de minha morte!

Um raio de sol iluminou completamente todo o lado da árvore onde eu estava em pé, para me encher de terror. O sol nascia rosado no leste. Eu estava em pé, entre seu enorme disco vermelho e a árvore, mas não projetava sombra alguma sobre o tronco!
Um coro de lobos uivadores saldou a madrugada. Os vi sentados sobre suas patas traseiras, sozinhos e em grupos, em cima de cúpulas de montículos irregulares e túmulos completos que enchiam metade do deserto panorâmico que se prolongava até o horizonte. Então me dei conta de que eram as ruínas da antiga e célebre cidade de Carcosa.

Ambrose Bierce
(Tradução: Eu mesmo Ò_Ò! Portanto créditos a www.nerdmaldito.com)

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